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Contos por contar

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10
Jul21

O menino que vivia no retângulo

Cristina Aveiro

 

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Era uma vez um menino que vivia num pequeno país que tinha a forma de um retângulo. Não se pense que era um país de matemáticos ou dado ao estudo sobre geometria, apenas aconteceu que com o tempo foi ficando com a forma de retângulo e os seus habitantes tinham muito orgulho na sua forma tão perfeita. Os habitantes do país tinham também muito orgulho por terem dois lados do retângulo virados para o mar. Havia o mar do lado pequeno e o mar do lado grande.

O menino vivia juntinho ao mar do lado pequeno. Nesse lado, mais a Sul, era raro fazer frio e no verão o calor apertava, mesmo à noite reinava a brisa morna e doce que parecia abraçar as pessoas. O menino tinha nascido naquele lado, e tinha ali crescido, toda a sua família vivera sempre naquele pequeno lado sul do retângulo. Os pais, os tios, primos e avós viviam do mar e do que a terra vermelha e fértil dava. Havia naquelas paragens figueiras, amendoeiras, alfarrobeiras, laranjeiras com laranjas doces como o mel e muitas hortas mais delicadas junto aos rios do barrocal.

O mar era o que mais atraia o menino. Gostava de ir com os tios nos seus barcos à pesca durante a noite com toda aquela agitação, algum friozinho na barriga que o mar sempre trazia e aquele cheiro especial que se vivia no barco.

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Adorava ir com os mariscadores para a ria que havia entre a terra e o mar, cheia de pequenas ilhas que pareciam canteiros num jardim feito de água pachorrenta. Aquele lugar era tão belo que até chamavam Formosa à Ria. O menino ia apanhar ameijoas, conquilhas, berbigões, lingueirões e outras delícias que trazia quando voltava para casa com o seu quinhão. Quando a mãe ia buscar a velha frigideira larga e desenhava a linha fina com o azeite, decorava com os cubinhos de alhos branco entre as linhas e levava ao lume forte começava a magia dos aromas. Depois era escutar aquele som inconfundível das cascas a baterem no metal e do azeite quente a resmungar por ser arrefecido e as conchinhas pouco a pouco a fazer aquele blac quando abriam. Nesta altura já a mãe tinha deitado carinhosamente uns pés de coentros do quintal para colorir e perfumar aquela verdadeira obra de arte que tocava todos os sentidos. Tudo eram perfumes inebriantes, desde o lavar das conhas que cheiravam a mar, ao doce cheiro morno do azeite a embalar os cubos do alho, à fusão de aromas perfeita quando chegavam as conchas e os coentros à frigideira sábia.

O menino vivia uma vida simples cheia de sol, mar e terra quente e vermelha. Na escola aprendia sobre o mundo, onde lhe afiançavam que havia países que não eram retângulos e que não se conhecia outro com uma geometria tão perfeita como o seu. Não pensem que o menino sonhava visitar e conhecer esses países de formas irregulares de outras geografias. O grande sonho do menino era conhecer todo o mar do lado grande do retângulo. Ia falando do seu sonho a todos e um dia levaram-no até a um lugar que ficava a meio do lado do mar do lado grande.

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O menino ficou fascinado e ao mesmo tempo perturbado. Aquele mar reinava sobre a terra, tinha um cheiro tão forte a maresia que parecia que o seu mar nem tinha cheiro. Aquele cheiro a maresia quase lhe trazia à boca o sabor do mar. As ondas deste mar não eram doces e vagarosas como as que conhecia. As ondas do mar do lado grande eram altas, cheias de espuma branca e impunham a sua voz bem alto dominando os sons da praia. Aquele mar não tinha o azul do seu, era de um azul mais cinzento, mais turvo e revolto e fazia a areia andar num desassossego veloz de trás para a frente e da frente para trás.

No regresso a casa o menino tinha a cabeça cheia com tantas coisas novas que tinha visto, estava muito feliz. Pensava como é que os dois mares podiam ser tão diferentes, o mar do lado grande nos seus modos mais bruscos e com toda a sua força lembrava-lhe um homem enorme, quase temível, mas ao mesmo tempo belo e fascinante. O seu mar, com a beleza da cor e da tranquilidade, os modos suaves e a graciosidade lembravam-lhe uma mulher carinhosa e tranquila quase tão doce como a sua mãe. O menino decidiu que quando fosse grande ia fazer uma lei em que o mar do lado pequeno passaria a ser “a mar” e que o mar do lado grande se continuaria a chamar “o mar”.

Quando em casa falou destas ideias sobre os dois mares um dos seus tios disse-lhe que havia países em que o mar era sempre tratado como “a mar” porque o mar é fonte de vida tal como todas as mães. O menino ficou feliz porque havia noutros lugares quem pensasse como ele. Desde esse dia o menino passou a olhar para o seu mar do lado pequeno e a pensar nele como “a mar”.

 

 

 

 

 

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