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Contos por contar

Contos por contar

03
Jun23

As Criaturas do Pinhal

Cristina Aveiro

 

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Naquele Pinhal encostado ao mar bravo de grandes ondas e vendavais havia seres que não se viam em mais lugar nenhum, na verdade nem mesmo naquele Pinhal.

Quando se passeava nos longos caminhos retos e ortogonais daquela floresta imensa, se se escutasse com atenção, ouvia-se o sussurro dos ramos dos pinheiros altos que se misturava com o rugir do mar lá ao longe, com a voz do vento que os movia e com o canto dos pássaros. Era aquela a voz da Catedral Verde, assim lhe chamara um dos seus amantes, era única e viciante. Quem conseguisse escutar a voz e sentir no coração a sua vibração ficava para sempre apaixonado por aquele lugar, nunca mais conseguia viver muito longe dele e tinha de voltar uma e outra vez bem amiúde.

As criaturas do Pinhal passeavam no manto emaranhado de fetos altos e verdes na Primavera, nas copas dos pinheiros altos no Verão, pelo meio dos mantos de cogumelos no Outono e nas charcas que se formavam nas chuvas do Inverno.

Divertiam-se a abanar os ramos dos pinheiros fazendo cair as pinhas e as carumas, mesmo sem haver vento, espalhando o penisco. Sim o penisco, as pequenas sementes de pinheiro com a sua bela asa voadora que as levava longe antes de pousarem na caruma entrelaçada.

Os pequenos seres mágicos adoravam atrapalhar o caminho das borboletas nos seus voos à volta das pequenas flores rasteiras que enfeitavam o chão arenoso do Pinhal durante todo o ano.

No Outono as criaturas mágicas espalhavam os esporos dos míscaros amarelos, dos cantarelos, e de tantos outros cogumelos que deixavam no ar um aroma especial a bosque e a molhado.

Na Primavera as criaturas pintavam de amarelo as flores dos tojos e nascia um verdadeiro oceano amarelo debaixo do teto verde das copas dos pinheiros.

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Não se sabia como eram as criaturas mágicas, mas todos tinham a certeza que cheiravam a resina, a pinhão e a maresia. Embora não as conseguissem ver todos acreditavam que eram uma espécie de nevoeiro de mil tons de verde luminoso e brilhante como a cauda de um cometa. Nas noites de nevoeiro e lua cheia havia quem dissesse que se podiam ver os rastos que deixavam no nevoeiro prateado.

Todos os habitantes das redondezas amavam o Pinhal gigante e mágico que era uma verdadeira muralha protetora da fúria do mar, dos vendavais e das areias voadoras. Gostavam de passear pelos caminhos geométricos do Pinhal, os aceiros e arrifes, pelos trilhos sinuosos como o do comboio de lata.

No Pinhal podiam beber água em tantas fontes… a da Água Formosa, a Férrea, a das Canas, a do Sardão, a da Garcia, a Nova, a de São Pedro, a do Tremelgo, a da Felícia, a dos Franceses… Todas as fontes eram lugares muito especiais, onde havia plantas e animais diferentes, típicos dos lugares encharcados. E os poços do Pinhal?! Eram muitos, mas os mais importantes eram o poço dos ingleses, o do fogo velho e o do nove.

No Pinhal os pinheiros mais altos e perfeitamente retilíneos eram chamados Pau Real, ou Sementões e tinham nomes e números tal era a sua importância.

Já as ribeiras eram lugares misteriosos, onde a luz do sol era coada pela vegetação densa e onde havia árvores gigantes, eucaliptos seculares, carvalhos alvarinhos enormes. Os habitantes não conseguiam saber se a Ribeira mais mágica era a de Moel, a do Tremelgo a do Rio Tinto ou a da Guarda Nova, mas de todas a de Moel era a mais concorrida.

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Junto à ribeira de Moel havia um lugar a que chamavam Vale dos Pirilampos que fascinava todos quando as pequenas luzes pintavam o ar com os seus bailados. Acreditava-se que as criaturas mágicas se abrigavam nestas zonas densas quando dormiam embaladas pelo canto dos pássaros.

Os habitantes amavam tanto o seu Pinhal encantado que tinham construído torres altíssimas com escadas em caracol até ao topo em lugares elevados, a torre do Facho, a da Crastinha, a da Boavista e a do Ponto Novo. No topo das torres havia uma pequena sala envidraçada onde dois habitantes faziam continuamente a vigilância do Pinhal e enviavam mensagens para as aldeias com pombos de correio sempre que avistavam ameaças para a floresta.

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A meio do Pinhal, junto ao mar, havia um farol que para além de guiar os navios também fazia a vigilância do tão precioso Pinhal.

O Pinhal estendia-se até às dunas da praia que contornavam todo o Pinhal a poente, e mesmo aí cresciam pinheiros. Eram moldados pelo vento, fazendo um enorme esforço para crescer apesar dos fortes ventos vindos do mar. Estes pinheiros não conseguiam crescer rumo ao céu. Cresciam deitados sobre as dunas, rastejando, erguendo-se um pouco de onde em onde, para depois voltar ao chão. Eram torcidos e retorcidos, sempre mais baixos do lado do mar e um pouco mais altos do lado do Pinhal.

Nas dunas havia outros companheiros na luta pela sobrevivência, os samoucos, as camarinheiras, os cardos lilases, os lírios das areias, … eram uma verdadeira barreira de proteção para as árvores e plantas do interior do Pinhal.

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Num dia trágico, o que ninguém podia imaginar aconteceu. Um incêndio gigante, furioso, incontrolável devorou quase todo o Pinhal. Queimou mesmo as dunas só parando na areia da praia.

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Foto: Hélio Madeira

Os habitantes ficaram desolados, sem saber como sobreviver àquele inferno de fogo que depois se tornou num deserto de cinza e negro. Acreditavam que as criaturas tinham sido destruídas pelo poder das chamas do terrível fogo apocalíptico. Imaginavam que tinham perdido para sempre o Pinhal secular que era parte da sua identidade.

A Natureza, rapidamente, na sua imensa força de vida, fez nascer pequenas plantas, começando a pintar de verde o imenso deserto cinza.

Ano após ano, vieram os pequenos arbustos, lá no meio, pequeninos pinheiros aninhados na vegetação rasteira foram aparecendo, frágeis, mas cheios de vida. As gentes plantaram pinheiros e outras árvores, mas eram incapazes de tratar de todo o imenso espaço nu e vazio.

Todos começaram a acreditar que as criaturas mágicas afinal deviam ter fugido do fogo, deviam ter resistido, que talvez tivessem ficado a pairar sobre a Lagoa da Saibreira durante o fogo. Sabiam que as Criaturas tinham voltado a fazer nascer os pinheiros por todo o Pinhal.

Agora todos sentiam que tinham ainda mais de se empenhar a cuidar e a fazer renascer a sua amada Catedral Verde porque assim tinha de ser.

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Vídeo sobre o Pinhal hoje e a sua recuperação, infelizmente, devido às condições atmosféricas adversas não foi possível avistar as Criaturas.

Para saber mais sobre o Pinhal, a sua história, imagens do passado, lugares a descobrir, deixo-vos estes dois fantásticos blogues onde recolhi informação preciosa e aprendi sobre este lugar que amo.

https://pinhaldorei.net/lugares-recantos/

http://opinhaldorei.blogspot.com/

 

22
Abr22

Os meninos do Pinhal do Rei

Cristina Aveiro

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O Pilado era uma pequena aldeia de lavradores pobres encravada a meio do lado de onde nasce o sol no enorme retângulo reticulado que era a Mata Nacional, o Pinhal do Rei, ou como se diz agora o Pinhal de Leiria. Lá bem ao longe, em linha reta ao longo do Aceiro G, percorrendo 17 talhões chegava-se ao mar. O Pinhal do Rei era um belo retângulo encostado ao mar, que o separava das terras de cultivo magras e pouco férteis nas suas franjas. Tudo naquele lugar recordava o trabalho imenso, ao longo de dezenas de gerações, para conter as areias das dunas no seu constante caminhar para terra. Tantas coisas tinham sido feitas, as cercas móveis junto ao mar, o plantio e constante cuidado e estudo do majestoso pinhal, o esforço para drenar lagoas e pântanos com a abertura de longas valas profundas, a criação de aceiros (caminhos perpendiculares ao mar, com dez metros de largura, identificados por letras de A a T, de Norte para Sul) e arrifes (caminhos paralelos ao mar, com cinco metros de largura, identificados por números, entre 0 e 22, de Este para Oeste) criando um reticulado de perfeita ordem e organização da floresta, com trezentos e quarenta e dois talhões numerados. A grelha de caminhos fora criada para se circular na floresta, para semear, cuidar, cortar e transportar a madeira, prevenir e ajudar a controlar os fogos que sempre iam aparecendo.

A Mata era o sustento de todos os que viviam à sua volta. Os terrenos que circundavam o pinhal eram arenosos, fracos e estéreis, só os adubos naturais extraídos do pinhal permitiam que as terras fossem produtivas. Das matas vinham os fetos e a caruma seca, ou melhor ainda o rapão e o piorno que se encontrava nos lugares mais húmidos e sombrios, uma crusta balofa sobre a terra, com os resíduos caiam das árvores e iam apodrecendo. Era também com os fetos e caruma, enfim com o mato, que eram feitas as camas dos animais, vacas e porcos, e que depois mais tarde iriam também ser usados como estrume preparação das sementeiras.

As vacas e bois com os seus carros eram a força de trabalho para os “carreiros”, lavradores pobres, que conduziam a madeira para junto de determinadas casas dos guardas do pinhal. As carradas eram revistadas pelos guardas, eram rachadas e por ano mais de doze mil carradas seguiam para a fábrica dos vidros.

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As moças novas e algumas mulheres também encontravam trabalho na Mata, era a elas que cabia a recolha das pinhas, a secagem nas enormes eiras e depois a recolha e tratamento do “penisco”, a preciosa semente do pinheiro, para fazer nascer as novas árvores nos talhões onde tinham sido feitos os abates.

A riqueza do Pinhal do Rei sempre fora cobiçada e para a proteger, havia uma enorme vala (com um metro e meio de largura e dois de profundidade) que circundava todo o pinhal, com apenas quatro passagens onde as entradas e saídas eram controladas por guardas, a passagem da Cova do Lobo, no aceiro “I” era a mais próxima da aldeia do Pilado.

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A meados do século XIX começou a produzir-se carvão com a lenha do pinhal, a carbonização era feita dentro do pinhal, apenas nos meses frios. Mais tarde, passou a ser feita pelas gentes dos lugares da orla do pinhal, em Água Formosa, Carvide e, principalmente, no Pilado, onde chegou a haver sessenta fornos. Era uma vida de grande labuta e de algum risco, a necessidade de recolher a lenha obrigava a entrar na Mata num dos pontos de controlo da guarda, onde era feita a revista aos carros de bois à entrada e à saída, como numa fronteira. Eram as mulheres e as crianças que faziam as recolhas na Mata. Ora eram as carradas de caruma e mato bem altas que traziam para as suas casas, eram sempre revistadas na saída do pinhal pelos guardas de serviço que faziam atravessar a carrada por varas enormes com espetos na ponta para se certificarem que não iam lenha escondida no meio do mato, ora eram carradas de lenhos secos que depois eram usados no fabrico do carvão.

Os lenhos secos podiam ser derrubados dos pinheiros, mas nunca por nunca podiam derrubar lenhos verdes e muito menos cortar ou derrubar pinheiros. Tudo era difícil naquela jornada pois os lenhos que davam o melhor carvão eram os verdes e a necessidade aguçava o engenho para os poder trazer. As crianças aprendiam desde cedo que se alguém viesse junto delas, nomeadamente os guardas-florestais, nunca podiam falar de lenha verde como sendo sua ou de sua mãe pois sabiam que a posse dessa lenha acarretava problemas imensos, desde multas ao impedimento de ir à mata recolher os bens de que tanto precisavam para subsistir.

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Dos dias de maior preocupação era quando iam recolher a lenha para o carvão e tinham de construir uma carga no carro dos bois com toda a arte de empilhamento, em que faziam uma parede a toda a volta com lenha seca e no meio da carrada vinha a preciosa lenha verde para ser usada no fabrico do carvão. No fim de encher o meio da carrada havia que a cobrir com lenha seca e passar com a maior tranquilidade possível no ponto de controlo onde o guarda inspecionava a carrada. Só depois de chegar a casa todos respiravam de alívio!

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Chegados a casa e descarregado o carro havia que começar a fazer o “forno do carvão”. Tudo começava numa pequena cova onde eram colocados dois longos barrotes, deixando um canal para o ar, cobria-se com uma camada de caruma e a lenha trazida da Mata era empilhada até à altura de um metro. Depois cobria-se tudo com mais caruma ou mato e, finalmente, com areia. A seguir lançava-se o fogo por uma das entradas do canal debaixo da pilha, e, de imediato, tapava-se deixando o outro lado aberto para respiro do forno enquanto ia ardendo. A lenha ardia devagar, asfixiada pela falta de oxigénio e queimava durante 4 dias. Nesses dias a vigilância do forno nunca parava, o forno não se podia apagar, e tinham de cobrir as fendas que aparecessem, senão o ar entrava e toda a lenha ardia como em fogo aberto, desaparecendo todo o carvão. Quando acabava a combustão retirava-se a areia, recolhia-se e ensacava-se o carvão. Uma parte era usado em casa e o restante era vendido nas povoações mais próximas sendo uma fonte de rendimento importante para a família.

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Nas idas à Mata com a mãe, e o carro de bois, os dois irmãos pequenos encarregavam-se de ir trazendo até junto do carro as braças que a mãe ia derrubando com uma enorme vara com gancho na ponta. Numa das idas e vindas até ao carro, os pequenos avistaram um dos guardas-florestais a aproximar-se e ficaram tomados de um enorme medo, desde logo pela figura imponente e algo assustadora e também porque sabiam que tudo podia correr mal. Eles bem sabiam que tinham trazido braças secas e também lenha verde. Havia dois montes separados junto ao carro para depois cuidadosamente ser construída a carga com todos os preceitos, de modo que a lenha verde ficasse bem escondida. O guarda aproximava-se e já não havia forma de desaparecerem ou se esconderem sem que as coisas ficassem ainda piores, assim os dois petizes ficaram bem juntos e aguardaram. O guarda cumprimentou-os e perguntou com voz grossa de quem era aquela lenha. Os miúdos responderam com firmeza que não era deles. Então o guarda perguntou, e a corda que está junto da lenha? As crianças, talvez com receio de que lhes fosse retirada a corda (bem precioso naqueles tempos) disseram confiantes, a corda é nossa. O guarda perguntou-lhes então com quem estavam, ao que responderam que estavam com a mãe, e interrogados sobre onde se encontrava, desataram a correr ao seu encontro aflitos.

O guarda ao chegar junto da mãe com ar sério disse-lhe:

- Muito bem! Trazes os teus filhos muito bem-ensinados.

 As crianças nem sabiam se deviam respirar de alívio ou ficar com mais receio ainda. O guarda continuou, com que então, a lenha não é vossa, mas a corda pertence-vos…

A mãe estava estranhamente tranquila, as crianças percebiam que o guarda sabia que a lenha era deles, mas… parecia não acontecer nada. Para maior surpresa das crianças, a mãe comentou com o guarda que estava quase na hora de comer, ao que o guarda lhe disse que ia comer com os colegas a um dos lugares mais junto ao mar.

Assim que o guarda virou costas, a cara da mãe abriu-se num enorme sorriso e disse aos meninos que tinham que aproveitar, nem era preciso estar a compor a carrada com lenha seca ao redor, porque os guardas não iam estar no posto de controlo durante o almoço e assim podiam levar quanta lenha quisessem. As crianças ajudaram e juntos levaram para casa uma enorme e valiosa carga.

Em casa, uma vez completadas as tarefas e já ao lume do borralho da cozinha os pequenos perguntaram à mãe como é que tudo tinha corrido tão bem. Porque é que o guarda não os tinha multado. Porque é que o guarda tinha dito que ia estar a comer com os outros guardas.

Então a mãe, exausta e feliz, explicou-lhes que também havia guardas que compreendiam as dificuldades que as famílias passavam, e talvez nem concordassem com as regras que tinham que aplicar, que também eles tinham famílias para alimentar e tinham as suas dificuldades. Ainda sem tudo compreenderem as crianças continuaram a perguntar, então mãe quer dizer que há guardas com coração e que conseguem esquecer um pouco todas aquelas regras duras e que há outros que não as conseguem esquecer…

A mãe puxou os dois para dentro do seu regaço e respondeu apenas com um sorriso doce.

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Foto de J.M. Gonçalves

O Pinhal do Rei sempre foi para mim um lugar mágico. Recentemente encontrei uma menina que na sua infância ajudava a mãe a fazer carvão e o Pinhal trouxe-me mais uma surpresa que desconhecia.

As imagens e a técnica de fazer o carvão usada no Pilado estão descritas em "Lemos, Paula, Vidas de Carvão – As Carvoeiras do Pinhal do Rei, Leiria: Imagens & Letras, 2012".

As restantes imagens pertencem ao Blog sobre o Pinhal do Rei de J.M.Gonçalves que recomendo para quem gosta de saber mais e onde recolhi informação para este conto. Este blog é um verdadeiro museu do Pinhal do Rei e que muito bom seria se esse museu existisse com Centro Interpretativo do Pinhal. Esta Mata é/foi uma obra prima de silvicultura e tem o saber acumulado de gerações.

14
Abr21

Camarinhas são lágrimas de rainha!

#13 - Branco - Desafio da Caixa dos Lápis de Cor

Cristina Aveiro

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Era uma vez uma princesa que desde muito pequena não mostrava gosto pelos luxos da corte, pelos vestidos ou pelos banquetes. A princesa era esguia, magra, tinha um lindo rosto de expressão bondosa e um porte elegante que emanava do seu interior e não das suas vestes. O rei seu pai quisera que a princesa fosse ensinada nas letras e na história do reino e do mundo, foi ensinada nas artes da diplomacia, foi educada para ser rainha, mas de uma forma muito invulgar. O seu pai dera à filha a mesma educação para o governo de um reino como se ela fosse um filho varão.

A princesa apreciava tudo o que aprendia, era muito culta e sabia que o seu pai tinha planos para a casar com um rei de um reino com o qual quisesse fortalecer alianças. A princesa gostava muito de meditar, rezar e jejuar e se pudesse escolher o seu destino iria para um convento onde pudesse dedicar-se aos mais pobres, doentes e desprotegidos. Conformada com o seu destino aos doze anos fez-se o seu casamento com um rei de um reino distante. O pai tinha-lhe dito que o seu noivo era um jovem rei, bem parecido e muito culto, que era dado às artes da música e da poesia.

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A jovem princesa fez a longa viagem na sua liteira. No primeiro encontro com o rei seu marido, no seu novo reino, de onde era a rainha, foi recebida em grande festa e desde logo o povo mostrou apreciar a sua jovem rainha.

A princesa, agora rainha, gostou do seu rei, era ruivo de cabelo farto, olhos azuis, rosto estreito que se abria num sorriso largo mostrando uns belos dentes. O rei não era muito alto, mas emanava uma aura de força e vigor de homem saudável e enérgico.

A rainha e o rei partilhavam o gosto pelas letras, pela música e tinham grandes planos para engrandecer o reino. O rei procurou o progresso criando feiras francas, uma bolsa para os mercadores, introduzindo culturas agrícolas, secando pântanos, criando explorações de minas, … A rainha procurou apoiar e tratar dos mendigos, doentes e desprotegidos, mas a rainha foi sempre lutando pela construção de albergues e hospitais para os mais desprotegidos. Nem sempre concordavam o rei e a rainha sobre estas obras de bem-fazer, mas a coragem e perseverança da rainha foram criando obra.

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A rainha sentia orgulho por o rei ter abolido o uso do latim nos documentos reais e estes passarem a usar a língua falada no reino. Para a rainha esta era uma forma de o poder real criar uma identidade forte do reino, valorizando a língua que era única e compreensível pelas gentes.

O rei era muito dado a festas, cantares e dançares e outros folgares. Antes do casamento tinha já três filhos que a rainha acolheu aos seus cuidados como era habitual acontecer nas famílias reais. Os hábitos de vida da rainha eram de simplicidade, recato, jejuns. A rainha não apreciava os banquetes reais, sempre fartos em carnes das caçadas do seu rei. Talvez estes seus hábitos frugais fossem a causa das prolongadas ausências do rei no paço.

A rainha sentia saudade, dor e mesmo ciúme do seu rei que ela sabia ser folgazão e apaixonado pela beleza. Encantava-o a beleza das paisagens, do mar, do céu e das nuvens, e… a beleza das damas. O rei perdia-se por loiras, trigueiras, nobres, burguesas ou simples camponesas. A rainha sabia destas paixões e sofria com elas. Quando as suas aias trocavam aqueles olhares indiscretos e de pena a rainha logo sabia que algo de novo e intenso se passava.

Sempre que o rei estava no paço e não chegava à hora acostumada, a rainha por mais esforço que fizesse para se não notar, ficava inquieta, pensativa e nervosa.

Num desses dias a rainha deu ordens ao seu séquito uma ida ao pinhal que o rei lhe tinha oferecido no ido ano de 1300. A sua intuição levo-a um local rochoso junto ao mar que sabia ser das preferências do rei. Chegada perto do local, mandou parar o séquito e seguiu sozinha até ao lugar onde se encontrava o cavalo do seu rei. Perante a evidência da traição, os belos olhos da rainha deixavam sair lágrimas cristalinas, pelo rosto abaixo, perdendo-se sobre o mato.

Nessa zona do pinhal os pequenos arbustos cobriram-se de pérolas brancas redondas onde ficaram prezas as lágrimas da rainha. Com o tempo todo o pinhal passou a ter destes arbustos que no verão se cobriam e cobrem de pérolas brancas, em especial nas dunas mais próximas do mar. O povo do reino chamou-lhes camarinhas e elas continuam a crescer apenas nesse reino e nesse pinhal.

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Fotografia de Sofia Francisco

Texto no âmbito do #13 Desafio da Caixa dos Lápis de Cor - Branco

Neste desafio, que eu saiba, participo eu, a Oh da guarda peixe frito, a Concha, A 3ª Face, a Maria Araújo, a Fátima Bento, a Imsilva, a Luísa De Sousa, a Maria, o José da Xâ,  a Rute Justino, a Ana D., a Célia, a Charneca Em Flor,  a Gorduchita, a Miss Lollipop, a Ana Mestre a Ana de Deus, João-Afonso Machado, A Marquesa da Marvila e a bii yue.

Este é o "novo último texto do desafio". Acredito que no futuro, de vez em quando vou encontrar novos lápis e vou pintar palavras de novo, pois este desafio ensinou-me como isso pode ser gratificante.

24
Mar21

Hoje vamos à maré, quem quer vir?

#10 - Verde Claro - Desafio da Caixa dos Lápis de Cor

Cristina Aveiro

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Era uma vez um bando de primos que adorava estar na praia com a tia Amélia, que não tinha filhos e vivia numa casa só para ela. Aquela praia aninhada no Pinhal de Leiria tinha poucas casas, era ventosa e o mar estava bravo a maior parte do tempo, mas a criançada adorava estar lá. Havia dias em que iam fazer passeios e explorar o pinhal e havia sempre jogos e coisas para fazer, coisas simples como apanhar pinhas a ver quem consegui ter mais, procurar o lugar mais escondido no meio dos medronheiros altos e densos, subir a colina onde estava o posto de vigia dos fogos e ver se os deixavam subir. Nunca se cansavam de inventar coisas para fazer e a tia escutava aquelas vontades todas de gente pequenina e ia combinando, aceitando e rejeitando projetos conseguindo que o bando aceitasse as escolhas finais que eram da tia. A tia era mais fácil de convencer a fazer coisas diferentes do que os pais deles. Havia coisas que só podiam fazer sendo muitos e mesmo as ideias que iam tendo para brincar e fazer eram mais e melhores por estarem naquele lugar e por estarem todos juntos. Quando planeavam o que queria fazer falavam muito, às vezes discutirem de forma acalorada qual era a melhor coisa que podiam fazer no dia seguinte, mas isso só tornava tudo mais divertido.

Um dia de manhã bem cedo a tia disse: - Hoje vamos à maré, quem quer vir?

A criançada ficou logo a dizer que sim com entusiasmo. Alguns não sabiam o que era ir à maré, mas queriam ir na mesma. Todos sabiam que havia a maré cheia e a maré vazia, no fundo o mar encolhia e esticava todos os dias sempre ao mesmo ritmo. Eles preferiam quando a maré estava vazia porque podiam aventurar-se um pouco mais na água. Na maré cheia, mesmo nos raros dias de bandeira verde, apenas podiam molhar os pés porque o mar ainda que manso era grande, com ondas suaves mas muito gordas e ficava fundo, não era para gente pequena.

Vamo-nos despachar a vestir e tomar o pequeno-almoço, depois, cada um agarra no seu balde de praia e leva-o consigo e a tia leva o resto das coisas. No caminho da praia foram para a zona das rochas que estavam descobertas porque a maré estava bem vazia. Estava tão vazia que até se conseguia passar até à outra praia mais a Sul. Os miúdos estavam encantados com o que iam vendo. A tia explicou que iam apanhar os mariscos das rochas, mostrou-lhes os burriés, lapas, os mexilhões, percebes e todos podiam procurar outras coisas que lhes parecessem boas para apanhar. A tia disse que depois daquela pescaria iam fazer um enorme petisco e comer o que apanhassem. Algumas crianças fixaram-se em apanhar os burriés ficando fascinadas com a quantidade de cores que tinham, desde preto, castanho, riscados de branco, … Outras tentavam apanhar os percebes, era uma tarefa mais difícil, os maiores percebes cresciam nas fendas entre duas rochas ou então nas zonas mais baixas, virados de “cabeça” para baixo. Um dos primos ia saltitando de rocha em rocha, apanhando um pouco de tudo o que encontrava.

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Para apanhar as lapas era preciso a ajuda da tia porque tinham de usar uma navalha para as descolar da rocha. Afinal não é à toa que se diz “agarrado como uma lapa”.

Quando a maré começou a subir e todos já estavam a ficar cansados a tia disse que era hora de irem embora e assim foi. Antes de regressar a casa para guardar a pescaria sentaram-se na areia da praia com os seus baldes ao centro para todos verem as pescarias de cada um. Ficaram admirados com o cada um tinha apanhado. Mas havia um balde que deixou todos de boca aberta. Um dos pequenos tinha o balde cheio de alface do mar, linda no seu verde claro, viçoso e brilhante e ele estava muito orgulhoso.

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Os primos começaram a rir e a dizer que ele não tinha percebido nada! Aquilo não era pescaria nenhuma. O menino começou a ficar triste e foi dizendo que se ia haver um petisco com coisas do mar também devia haver uma salada e ele tinha apanhado a alface para a salada. Todos riram ainda mais. Então a tia disse para pararem de ser mauzinhos, aquela não era a alface normal das saladas a que estavam habituados, era alface do mar, comestível e um bom alimento. Sentiam que tinham feito uma bela pescaria e, se a tia dizia que a alface do mar também ia brilhar no petisco é porque era verdade.

Ao chegar a casa foi toda uma azáfama a limpar os mariscos, a aprender como se cozinhava cada um e até mais tarde a aprender como se comiam. Sim, comer burriés tem que ser aprendido, não se percebe logo como se vai tirar o bichinho da concha.

Chegou a vez de lavar muito bem a alface do mar e todos estavam curiosos sobre como a iam comer. A tia explicou que quando tinha visitado os Açores tinha aprendido muitas maneiras de cozinhar aquelas alfaces e naquele dia elas iam entrar em muitos pratos, na sopa, na salada que ia acompanhar o jantar, numa bela omelete, num molho para barrar as torradas e um pouco para a caldeirada. Se houvesse mais até podiam usar para fazer uma sobremesa, mas hoje ia mesmo ser só fruta para a sobremesa! 

E tu alguma vez foste à maré? Alguma vez provaste os legumes do mar, as algas?

 

Texto no âmbito do #10 Desafio da Caixa dos Lápis de Cor - Verde Claro

Neste desafio, que eu saiba, participo eu, a Oh da guarda peixe frito, a Concha, A 3ª Face, a Maria Araújo, a Fátima Bento, a Imsilva, a Luísa De Sousa, a Maria, o José da Xâ,  a Rute Justino, a Ana D., a Célia, a Charneca Em Flor,  a Gorduchita, a Miss Lollipop, a Ana Mestre a Ana de Deus, João-Afonso Machado, A Marquesa da Marvila e a bii yue.

Todas as quartas-feiras e durante 12 semanas publicaremos um texto novo inspirado nas cores dos lápis da caixa que dá nome ao desafio. Acompanha-nos nos blogues de cada uma, ou através da tag "Desafio Caixa de lápis de Cor". Ou então, junta-te a nós :)

06
Fev21

A festa dos burros

Cristina Aveiro

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Há muito tempo, num quente mês de Agosto, estava a família de veraneio na Praia de Paredes de Vitória. Paredes de Vitória era um lugar singular, meia dúzia de casas baixas de um só andar, três ruas, um vale arenoso percorrido por um vivo ribeiro sempre cheio de água com um caudal forte no seu leito estreito e verdejante, mesmo nos meses de Verão.

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O vale era todo cultivado, cheio de hortas, todos os cantinhos de terra cultivados com esmero. Aquele lugar pequeno era cheio de magia. A praia era extensa, plana e parecia estar guardada por dois gigantes. A Norte havia um rochedo imponente, castanho, altivo a que chamavam castelo. À filha mais velha da família aquele rochedo parecia-lhe a esfinge dos livros de História, era enorme. A Sul erguia-se um morro orgulhoso, com cor de barro vermelho com laivos suaves de um tom esbranquiçado, da mesma altura do castelo. A meio da praia corria o ribeiro que se espraiava e fazia as delícias da criançada, em especial nos dias de mar bravo.

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Nas manhãs, todo o vale ficava coberto por um espesso manto de neblina que deixava tudo refrescado, como que borrifado com zeloso cuidado. Pelo vale acima subia o fumo da única padaria do lugar, que enchia todo o vale com o cheiro doce do pão cozido e da lenha de pinho queimada. As meninas desciam pelo carreiro do vale até à padaria para comprar o pão da manhã e depois regressavam à casa por cima de uma das várias azenhas que havia bem ao fundo do vale mais perto da nascente.

Os dias de praia corriam doces, alguns eram passados dentro da barraca de lona que alugavam ao banheiro a que todos chamavam Boguinhas. Esses eram os dias de neblina, que mesmo assim eram divertidos com infindáveis jogos de cartas, jogos com pedrinhas ou conchinhas, o jogo dos três cantinhos desenhado na areia, nesses dias o tempo parecia gigante, quase sem fim.

Um dia os pais avisaram as meninas que ia haver uma romaria muito importante à capelinha de Nossa Senhora da Vitória. As meninas não sabiam o que era uma romaria e os pais explicaram que era uma festa e que neste caso era muito diferente das que já tinham visto. No dia 15 de Agosto vinha um longo cortejo de Pataias com muitas pessoas, transportadas em carroças de burros que vinham todas enfeitadas com flores e ramagens e mesmo os burros vinham com as cabeças enfeitadas com flores do campo.

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As meninas ficaram cheias de curiosidade, não imaginavam uma procissão com burros e ainda mais enfeitados. Elas costumavam ver às vezes as mulheres que vinham em carroças de burro cheias de roupa para a lavarem no ribeiro, e secar nas margens, desaparecendo ao final do dia, de regresso a Pataias, de acordo com o que lhes tinham dito.

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Agora ficaram a imaginar como seria tudo aquilo enfeitado. O pai das meninas levou-as até ao paredão para conhecerem o Zé Ilhóca, um ancião que sabia incontáveis histórias sobre aquela terra. Ele começou por dizer que aquele lugar que era agora tão pequeno, já tinha sido um importante porto de mar, o maior daquelas costas. Era de tal forma importante que D. Dinis tinha concedido Carta de Foral no ano de 1282. As pequenas nem conseguiam desviar o olhar do rosto bronzeado, cheio de rugas fundas sempre com a boina pousada na cabeça um pouco descaída para trás. Com o passar dos séculos, o mar tinha mudado tudo o que ali havia, a invasão da areia fora aos poucos matando o porto. Das 17 caravelas e do forte para defesa do porto nada restava, e até a paróquia de Paredes tinha sido mudada para Pataias, corria o ano de 1536. Desde essa data as gentes de Pataias passaram a fazer a romagem a Nossa Senhora da Vitória, padroeira de Paredes.

Quando chegou o dia, bem cedo estavam junto à ermida de Nossa Senhora da Vitória e começaram a ver lá ao longe na estrada, rasgada no meio do imenso pinhal do rei, as primeiras carroças enfeitadas. Numa delas vinha o Anjo a cantar as loas, havia também um Juiz e uma Juíza e todos estavam vestidos de modo especial, festivo e respeitoso, alegre, mas devoto.

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Ao chegarem à ermida os romeiros celebraram em animada refeição, havia música e dança. As carroças, os burros e as gentes todos descansavam e refaziam-se da longa caminhada. No final da tarde celebraram a missa, fizeram a procissão com a Senhora da Vitória e regressaram então a Pataias.

As meninas desceram do morro da ermida e continuaram a falar sem parar de tudo o que tinham visto. Sentiam-se contentes, cansadas, mas cheias de imagens coloridas e sons alegres que estavam já a formar uma memória que elas não sabiam, mas que iria durar para sempre.

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A festa dos burros continua a realizar-se no dia 15 de Agosto mantendo a tradição secular.

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