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Contos por contar

Contos por contar

22
Abr22

Os meninos do Pinhal do Rei

Cristina Aveiro

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O Pilado era uma pequena aldeia de lavradores pobres encravada a meio do lado de onde nasce o sol no enorme retângulo reticulado que era a Mata Nacional, o Pinhal do Rei, ou como se diz agora o Pinhal de Leiria. Lá bem ao longe, em linha reta ao longo do Aceiro G, percorrendo 17 talhões chegava-se ao mar. O Pinhal do Rei era um belo retângulo encostado ao mar, que o separava das terras de cultivo magras e pouco férteis nas suas franjas. Tudo naquele lugar recordava o trabalho imenso, ao longo de dezenas de gerações, para conter as areias das dunas no seu constante caminhar para terra. Tantas coisas tinham sido feitas, as cercas móveis junto ao mar, o plantio e constante cuidado e estudo do majestoso pinhal, o esforço para drenar lagoas e pântanos com a abertura de longas valas profundas, a criação de aceiros (caminhos perpendiculares ao mar, com dez metros de largura, identificados por letras de A a T, de Norte para Sul) e arrifes (caminhos paralelos ao mar, com cinco metros de largura, identificados por números, entre 0 e 22, de Este para Oeste) criando um reticulado de perfeita ordem e organização da floresta, com trezentos e quarenta e dois talhões numerados. A grelha de caminhos fora criada para se circular na floresta, para semear, cuidar, cortar e transportar a madeira, prevenir e ajudar a controlar os fogos que sempre iam aparecendo.

A Mata era o sustento de todos os que viviam à sua volta. Os terrenos que circundavam o pinhal eram arenosos, fracos e estéreis, só os adubos naturais extraídos do pinhal permitiam que as terras fossem produtivas. Das matas vinham os fetos e a caruma seca, ou melhor ainda o rapão e o piorno que se encontrava nos lugares mais húmidos e sombrios, uma crusta balofa sobre a terra, com os resíduos caiam das árvores e iam apodrecendo. Era também com os fetos e caruma, enfim com o mato, que eram feitas as camas dos animais, vacas e porcos, e que depois mais tarde iriam também ser usados como estrume preparação das sementeiras.

As vacas e bois com os seus carros eram a força de trabalho para os “carreiros”, lavradores pobres, que conduziam a madeira para junto de determinadas casas dos guardas do pinhal. As carradas eram revistadas pelos guardas, eram rachadas e por ano mais de doze mil carradas seguiam para a fábrica dos vidros.

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As moças novas e algumas mulheres também encontravam trabalho na Mata, era a elas que cabia a recolha das pinhas, a secagem nas enormes eiras e depois a recolha e tratamento do “penisco”, a preciosa semente do pinheiro, para fazer nascer as novas árvores nos talhões onde tinham sido feitos os abates.

A riqueza do Pinhal do Rei sempre fora cobiçada e para a proteger, havia uma enorme vala (com um metro e meio de largura e dois de profundidade) que circundava todo o pinhal, com apenas quatro passagens onde as entradas e saídas eram controladas por guardas, a passagem da Cova do Lobo, no aceiro “I” era a mais próxima da aldeia do Pilado.

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A meados do século XIX começou a produzir-se carvão com a lenha do pinhal, a carbonização era feita dentro do pinhal, apenas nos meses frios. Mais tarde, passou a ser feita pelas gentes dos lugares da orla do pinhal, em Água Formosa, Carvide e, principalmente, no Pilado, onde chegou a haver sessenta fornos. Era uma vida de grande labuta e de algum risco, a necessidade de recolher a lenha obrigava a entrar na Mata num dos pontos de controlo da guarda, onde era feita a revista aos carros de bois à entrada e à saída, como numa fronteira. Eram as mulheres e as crianças que faziam as recolhas na Mata. Ora eram as carradas de caruma e mato bem altas que traziam para as suas casas, eram sempre revistadas na saída do pinhal pelos guardas de serviço que faziam atravessar a carrada por varas enormes com espetos na ponta para se certificarem que não iam lenha escondida no meio do mato, ora eram carradas de lenhos secos que depois eram usados no fabrico do carvão.

Os lenhos secos podiam ser derrubados dos pinheiros, mas nunca por nunca podiam derrubar lenhos verdes e muito menos cortar ou derrubar pinheiros. Tudo era difícil naquela jornada pois os lenhos que davam o melhor carvão eram os verdes e a necessidade aguçava o engenho para os poder trazer. As crianças aprendiam desde cedo que se alguém viesse junto delas, nomeadamente os guardas-florestais, nunca podiam falar de lenha verde como sendo sua ou de sua mãe pois sabiam que a posse dessa lenha acarretava problemas imensos, desde multas ao impedimento de ir à mata recolher os bens de que tanto precisavam para subsistir.

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Dos dias de maior preocupação era quando iam recolher a lenha para o carvão e tinham de construir uma carga no carro dos bois com toda a arte de empilhamento, em que faziam uma parede a toda a volta com lenha seca e no meio da carrada vinha a preciosa lenha verde para ser usada no fabrico do carvão. No fim de encher o meio da carrada havia que a cobrir com lenha seca e passar com a maior tranquilidade possível no ponto de controlo onde o guarda inspecionava a carrada. Só depois de chegar a casa todos respiravam de alívio!

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Chegados a casa e descarregado o carro havia que começar a fazer o “forno do carvão”. Tudo começava numa pequena cova onde eram colocados dois longos barrotes, deixando um canal para o ar, cobria-se com uma camada de caruma e a lenha trazida da Mata era empilhada até à altura de um metro. Depois cobria-se tudo com mais caruma ou mato e, finalmente, com areia. A seguir lançava-se o fogo por uma das entradas do canal debaixo da pilha, e, de imediato, tapava-se deixando o outro lado aberto para respiro do forno enquanto ia ardendo. A lenha ardia devagar, asfixiada pela falta de oxigénio e queimava durante 4 dias. Nesses dias a vigilância do forno nunca parava, o forno não se podia apagar, e tinham de cobrir as fendas que aparecessem, senão o ar entrava e toda a lenha ardia como em fogo aberto, desaparecendo todo o carvão. Quando acabava a combustão retirava-se a areia, recolhia-se e ensacava-se o carvão. Uma parte era usado em casa e o restante era vendido nas povoações mais próximas sendo uma fonte de rendimento importante para a família.

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Nas idas à Mata com a mãe, e o carro de bois, os dois irmãos pequenos encarregavam-se de ir trazendo até junto do carro as braças que a mãe ia derrubando com uma enorme vara com gancho na ponta. Numa das idas e vindas até ao carro, os pequenos avistaram um dos guardas-florestais a aproximar-se e ficaram tomados de um enorme medo, desde logo pela figura imponente e algo assustadora e também porque sabiam que tudo podia correr mal. Eles bem sabiam que tinham trazido braças secas e também lenha verde. Havia dois montes separados junto ao carro para depois cuidadosamente ser construída a carga com todos os preceitos, de modo que a lenha verde ficasse bem escondida. O guarda aproximava-se e já não havia forma de desaparecerem ou se esconderem sem que as coisas ficassem ainda piores, assim os dois petizes ficaram bem juntos e aguardaram. O guarda cumprimentou-os e perguntou com voz grossa de quem era aquela lenha. Os miúdos responderam com firmeza que não era deles. Então o guarda perguntou, e a corda que está junto da lenha? As crianças, talvez com receio de que lhes fosse retirada a corda (bem precioso naqueles tempos) disseram confiantes, a corda é nossa. O guarda perguntou-lhes então com quem estavam, ao que responderam que estavam com a mãe, e interrogados sobre onde se encontrava, desataram a correr ao seu encontro aflitos.

O guarda ao chegar junto da mãe com ar sério disse-lhe:

- Muito bem! Trazes os teus filhos muito bem-ensinados.

 As crianças nem sabiam se deviam respirar de alívio ou ficar com mais receio ainda. O guarda continuou, com que então, a lenha não é vossa, mas a corda pertence-vos…

A mãe estava estranhamente tranquila, as crianças percebiam que o guarda sabia que a lenha era deles, mas… parecia não acontecer nada. Para maior surpresa das crianças, a mãe comentou com o guarda que estava quase na hora de comer, ao que o guarda lhe disse que ia comer com os colegas a um dos lugares mais junto ao mar.

Assim que o guarda virou costas, a cara da mãe abriu-se num enorme sorriso e disse aos meninos que tinham que aproveitar, nem era preciso estar a compor a carrada com lenha seca ao redor, porque os guardas não iam estar no posto de controlo durante o almoço e assim podiam levar quanta lenha quisessem. As crianças ajudaram e juntos levaram para casa uma enorme e valiosa carga.

Em casa, uma vez completadas as tarefas e já ao lume do borralho da cozinha os pequenos perguntaram à mãe como é que tudo tinha corrido tão bem. Porque é que o guarda não os tinha multado. Porque é que o guarda tinha dito que ia estar a comer com os outros guardas.

Então a mãe, exausta e feliz, explicou-lhes que também havia guardas que compreendiam as dificuldades que as famílias passavam, e talvez nem concordassem com as regras que tinham que aplicar, que também eles tinham famílias para alimentar e tinham as suas dificuldades. Ainda sem tudo compreenderem as crianças continuaram a perguntar, então mãe quer dizer que há guardas com coração e que conseguem esquecer um pouco todas aquelas regras duras e que há outros que não as conseguem esquecer…

A mãe puxou os dois para dentro do seu regaço e respondeu apenas com um sorriso doce.

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Foto de J.M. Gonçalves

O Pinhal do Rei sempre foi para mim um lugar mágico. Recentemente encontrei uma menina que na sua infância ajudava a mãe a fazer carvão e o Pinhal trouxe-me mais uma surpresa que desconhecia.

As imagens e a técnica de fazer o carvão usada no Pilado estão descritas em "Lemos, Paula, Vidas de Carvão – As Carvoeiras do Pinhal do Rei, Leiria: Imagens & Letras, 2012".

As restantes imagens pertencem ao Blog sobre o Pinhal do Rei de J.M.Gonçalves que recomendo para quem gosta de saber mais e onde recolhi informação para este conto. Este blog é um verdadeiro museu do Pinhal do Rei e que muito bom seria se esse museu existisse com Centro Interpretativo do Pinhal. Esta Mata é/foi uma obra prima de silvicultura e tem o saber acumulado de gerações.

13
Set21

Um ritual de passagem

#8 - Desafio 30 dias de escrita da Ana de Deus

Cristina Aveiro

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Na noite de consoada o cheiro das filhoses a fritar tem que encher a casa! Há um aconchego e uma magia da noite de Natal que este aroma traz e reforça.

A minha avó fritava filhoses nessa noite ao lume, num tacho de ferro em azeite. Eram filhoses de massa de farinha de trigo com abóbora cozida e que levedava num enorme alguidar de barro vidrado de verde. A massa era aconchegada e envolta numa manta junto ao calor suave. Depois, contava-me a minha mãe, à hora de fritar, o meu avô trazia a lenha cortada cuidadosamente para poder dar um “lume certinho” nem demasiado forte, nem que enfraquecesse facilmente. As crianças estavam ali com a mãe e passavam as filhoses ao de leve pelo açúcar com canela. Quando começavam a ficar cansadas a minha avó perguntava-lhes se queriam que lhes fizesse filhoses com formas especiais, “um galito”, “um pião”, … para os manter animados com a tarefa.

Quando eu era criança a minha mãe repetia em nossa casa o ritual de amassar e fritar as filhoses, já em óleo, num fogão a gás e num espesso tacho de alumínio. Eu adorava ver a massa ir levedar e ver como ficava no fim. Mais tarde começaram a surgir novas receitas, menos trabalhosas e eu comecei a participar mais ativamente. Após várias alterações ficou a receita datilografada como a versão oficial das filhoses. Foi datilografada por um bom amigo cuja esposa participou na afinação da receita (como sinto saudades da D. Ilda e do Sr. Silva).

Todos os Natais sou eu que faço as filhoses e frito enquanto outros vão tratando da ceia. Adoro fazer as filhoses no Natal!

 

 Texto escrito no âmbito do desafio 30 dias de escrita lançado pela Ana de Deus, e em que participam Ana de Deusbii yueJoão-Afonso MachadoJorge OrvélioJosé da XãMaria Araújo  e eu.

 

 

10
Set21

Uma pessoa amada

#4 - Desafio 30 dias de escrita da Ana de Deus

Cristina Aveiro

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A minha mãe era a mais bonita de todas, tinha e tem a magia para resolver e tratar todas as dores, doenças, medos, receios, problemas. Continua a ter uma energia invejável, uma vontade de cuidar, de fazer, de ser Mãe e Avó inteira e com todas as fibras do seu Ser. É apaixonada pelas suas filhas, ama os netos e ajuda-os a crescer numa entrega de alma e coração como não conheço outra. É forte e corajosa e tem um coração frágil, de cristal quase, mas é assim com todos os que muito amam.

A minha mãe é frontal e pressiona os que gosta sempre que entende que é preciso, procurando ajudá-los a encontrar o seu melhor caminho. Nunca desiste! Nunca apaparica, ou deixa de ver os defeitos e as qualidades dos seus, diz sempre que isso nada tem a ver com o que sente por eles. Cada um tem as suas qualidades e as suas fraquezas e é do todo que se alcança mais e melhor.

A minha mãe sempre procurou aprender para compreender e saber agir melhor, procurou especialistas, ouviu pedagogos, leu muito sobre isto de ser mãe e educar e sempre manifestou que é uma missão dura e difícil, mas que sempre foi o seu sonho. Aprendi e aprendo muito com a minha mãe, foi com ela que comecei a sonhar desde muito menina que também queria ser mãe. Aprendi com ela que toda a vida nos temos de esforçar por aprender e que se aprende sempre desde que tenhamos vontade (a escola é uma pequena parte desse caminho, para ela foram apenas quatro anos). Aprendi que a verdade às vezes é dura de escutar, mas que é quase sempre a melhor forma de avançarmos no nosso caminho (aqui ficam de lado as mentiras piedosas, que claro está têm o seu lugar e o seu papel).

Ficaria interminavelmente a falar da minha mãe e não iria conseguir dizer tudo o que me enche o peito…

Os olhos da minha mãe têm uma cor doce de mel e falam, leem e abraçam-me como nenhuns outros!

 

 

 Texto escrito no âmbito do desafio 30 dias de escrita lançado pela Ana de Deus, e em que participam Ana de Deusbii yueJoão-Afonso MachadoJorge OrvélioJosé da XãMaria Araújo  e eu.

 

 

03
Mar21

O berço de todos

#7 - Azul Céu - Desafio da Caixa dos Lápis de Cor

Cristina Aveiro

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Foi há mais de cinquenta anos que a avó comprou aquele singelo berço com pés em vime e alcofa em entrançado de folhas de palmeira. Era um berço grande porque a avó tinha poucos recursos e queria que o seu bebé coubesse nele durante alguns meses. A alcofa também permitia transportar o bebé porque nessa altura não havia cadeirinhas especiais e carrinhos para passear o bebé. Carrinhos para passear até havia, com belas alcofas, mas essas a avó não podia comprar.

Com todo o cuidado e sabedoria de costureira vestiu aquela estrutura e aquela alcofa tornando-as dignas de um rei, criou um verdadeiro berço de ouro.

Começou por escolher um piquê de algodão com relevos arredondados em azul-celeste, assim estaria perfeito quer nascesse um menino ou uma menina. A alcofa tinha dois folhos longos rematados por um singelo bordado branco que acentuava a delicadeza e pureza que a alcofa transmitia. As pegas da alcofa foram revestidas com tiras de tecido da mesma cor e tudo parecia fazer parte daquele cantinho de céu azul. A forra à volta da caminha tinha um enchimento de esponja para tudo ser fofo e suave para o bebé, e de novo o azul recobria aquela macieza. No final o berço estava lindo, era requintado e singelo, confortável e diferente dos berços que a avó fazia para as pessoas abastadas que usavam tecidos luxuosos, mas também diferente dos singelos berços de madeira que eram mais habituais entre os vizinhos e familiares.

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E nasceu a menina que estreou o berço, depois outra menina e ainda outra. Todas usaram o berço e foram-se afeiçoando a ele ao vê-lo ser usado pelas irmãs.

Passaram trinta anos desde que tinha sido feito e quando a primeira menina estava para ser mãe quis aquele berço para o seu bebé. Tudo foi arranjado e limpo, mas a roupa do berço estava como se tivesse sido acabada de fazer. E nasceu uma menina, e depois outra e as três irmãs e a avó deliciaram-se a vê-las no bercinho que todas sentiam como seu.

Anos mais tarde a irmã do meio voltou ao sótão da avó para ir buscar de novo o berço. E nasceu uma menina, e depois outra e as três irmãs, a avó e as netas deliciaram-se a vê-las no seu berço.

E o tempo nunca para e aquelas irmãs todas sonhavam ser mães e foi a vez de a menina mais nova ir buscar o berço. Tinha passado muito tempo desde que o berço tinha sido criado e desta vez todos ficaram a saber que vinham aí dois belos meninos de uma só vez. E foi tempo de a avó inventar um berço novo “irmão” do berço de todos. Jazendo jus à diferença entre os dois meninos, a avó comprou de novo tecido de algodão azul-celeste e usou bordado branco, mas este novo berço não ia ser igual ao antigo. A avó fez um berço que combinava na perfeição com o antigo mas que era um pouco diferente. Quando nasceram os dois meninos todos ficaram maravilhados com os belos bebés perfeitamente emoldurados pelos berços azul-celeste. A avó maravilhava-se com os seus meninos, as suas primeiras meninas e as suas queridas netas e pensava que o berço provavelmente não iria receber outro bebé nós próximos anos.

Quando veio a notícia de que vinha lá um irmãozinho para os gémeos a avó nem conseguia acreditar, quase rebentava de alegria.

Agora o berço é a casa do bebé que já nasceu nestes tempos estranhos e o berço de todos continua a embalar como se fosse um céu azul.

Quem será que ele vai acolher ainda?

 

Texto no âmbito do #7 Desafio da Caixa dos Lápis de Cor - Azul Céu

Neste desafio, que eu saiba, participo eu, a Oh da guarda peixe frito, a Concha, A 3ª Face, a Maria Araújo, a Fátima Bento, a Imsilva, a Luísa De Sousa, a Maria, o José da Xâ,  a Rute Justino, a Ana D., a Célia, a Charneca Em Flor,  a Gorduchita, a Miss Lollipop, a Ana Mestre a Ana de Deus, João-Afonso Machado, e a bii yue.

Todas as quartas-feiras e durante 12 semanas publicaremos um texto novo inspirado nas cores dos lápis da caixa que dá nome ao desafio. Acompanha-nos nos blogues de cada uma, ou através da tag "Desafio Caixa de lápis de Cor". Ou então, junta-te a nós :)

01
Fev21

Pintando com palavras

O desafio de desenhar com palavras.. da Ana de Deus

Cristina Aveiro

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Imagem de Ana de Deus

A jovem mãe na casa dos trinta anos tinha uma fresca pele levemente morena, um forte cabelo castanho com caracóis largos indomáveis que usava penteados para trás, num enrolado na nuca, entre um nó e um carrapito. O rosto oval, de contorno doce e meigo como o sorriso que habitualmente tinha. Lábios delicados e carnudos muito desenhados, ladeados por vincos de quem ri e sorri com vontade. As bochechas levantadas de tom levemente rosado eram a base de um olhar límpido de grandes olhos esverdeados e pestanudos. As ligeiras olheiras eram parte das marcas da maternidade recente, mas não retiravam beleza ao conjunto encimado por sobrancelhas grossas, muito bem arqueadas e com o mesmo ar indomável. algo rebelde, que também tinham os cabelos.

O seu pescoço elegante e bem definido completava aquela face de beleza natural, serena, cheia de vida, e ao mesmo tempo complexa e plena de distinção.

Esta menina mulher é a minha irmã mais nova, de quem fui um pouco mãe pois quase vinte anos nos separam. Sinto um enorme orgulho nos seus feitos e na sua beleza de mãe radiosa e mulher forte e generosa que impressiona os que partilham o seu caminho.

 

 

Texto no âmbito do Desafio "Desenhar com palavras" da Ana de Deus

 

28
Nov20

A menina que queria ser professora

Cristina Aveiro

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Há muito, muito tempo, uma menina pequena, calma e alegre vivia numa pequena aldeia onde todos eram pequenos agricultores e viviam com muita simplicidade. Todos os dias era preciso ir buscar a água à fonte para poderem lavar-se, cozinhar e mesmo dar aos animais.

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Eduardo Gageiro

Não havia eletricidade e usavam candeeiros que queimavam combustível para dar luz. A comida era feita à lareira com o calor da lenha que se queimava. A roupa era lavada no ribeiro ou junto a poços de onde se tirava a água, o único detergente era o sabão azul.

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                                          Artur Pastor

Desde muito cedo todos trabalhavam para a família ter o suficiente para viver. Havia incontáveis tarefas da agricultura que incluíam semear, regar, apanhar alimento para os animais, colher frutos, feijões, milho, batatas, …

img-8-small700.jpg                                                  Artur Pastor

Em casa também havia sempre muitos afazeres, desde cuidar dos animais, amassar e cozer a broa, fazer a sopa, passar a ferro com o ferro a carvão. À noite no verão costumavam juntar-se numa eira ou num pátio com vizinhos e amigos a contar histórias antigas, a cantar e quando havia alguém que savia tocar concertina ou realejo era uma festa. 

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Quando a menina fez sete anos começou a ir à escola, ia um grupo de meninos da aldeia até ao lugar onde havia a escola mais próxima. A primeira vez foi um adulto com eles para aprenderem bem o caminho, mas depois já iam sozinhos a pé durante mais de meia hora. Os meninos da aldeia tinham todos roupas parecidas, feitas de chita ou outros tecidos modestos e iam todos descalços porque não tinham sapatos. Na escola havia meninos que viviam mesmo junto à escola e que tinham roupas um pouco melhores e usavam sapatos, mas todos estavam lá para aprender e o resto não importava.

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A menina ficou fascinada com a sua professora, era bonita, tinha a pele muito clara, roupas claras e muitos limpas, como se fossem roupas de domingo. As mulheres que a menina conhecia vestiam roupas escuras, grosseiras, tinham a pele escurecida pelo sol e pareciam mais cansadas e impacientes. Ali começou uma aventura fascinante de descoberta das letras, dos números, das contas, da história do seu país. A menina não perdia uma palavra do que dizia a professora, tudo a deixava quase sem conseguir respirar para não deixar fugir alguma coisa importante. Aprendeu a ler correctamente muito depressa e às vezes a professora chamava-a, punha-a no seu colo para que todos a pudessem, ver melhor e pedia-lhe para ler para os outros alunos. Nestes momentos a menina sentia uma alegria como nunca tinha sentido antes.

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Quando regressava da escola ia logo fazer as tarefas que a mãe lhe tinha destinado e assim que podia ia ler os livros da escola porque lá em casa não havia mais livros. À noite depois de terem jantado quando a família ficava à volta da lareira antes de se irem deitar, a menina gostava de conversar sobre a escola e de ler alto para todos quando lhe deixavam. Apenas o pai sabia ler, a mãe não, mas sabia fazer contas sem nunca ter ido à escola.

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À medida que ia crescendo a menina era ensinada a fazer todas as coisas que as mulheres da aldeia deviam saber para poderem tomar conta de uma casa e cuidar das terras. A menina gostava de aprender também a fazer estas tarefas, mas na escola o que aprendia era surpreendente, falava-se de coisas que nunca tinha ouvido, visto ou imaginado.

Os anos passaram e a menina fez os quatro anos de escola e a sua adorada professora disse aos seus pais que a menina estava preparada para fazer o exame da quarta classe. Um dia lá foi a menina com as suas tranças bem apertadas, num fato de domingo, com sapatos e tudo a uma escola na cidade. Foi um dia inesquecível, houve algum receio, mas tudo correu bem e a menina teve uma nota brilhante. No final até houve tempo para ir ao parque infantil andar nos baloiços.

 

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No final desse dia, a professora disse aos pais da menina que ela tinha muito talento, era muito inteligente e que era muito importante que continuasse a estudar. Naquele tempo quase todos os alunos só estudavam até ao quarto ano. Havia escolas para continuar a estudar, mas só na cidade e não era possível ir e vir todos os dias a pé uma criança tão pequena.

Os pais ficaram a pensar no que a professora tinha dito, mas eles não tinham posses para dar os estudos à menina e também tinham muito medo de a deixar ir sozinha para a cidade para a casa de alguém para poder continuar a estudar. Na aldeia todos deixavam a escola no quarto ano, eles estavam contentes por haver escola para os seus filhos, porque eles nem sequer tinham ido à escola, pensavam que já seria o suficiente.

A menina ficou profundamente triste por no ano seguinte não voltar à escola, nunca tinha dito a ninguém mas o seu sonho era ser professora e ensinar meninos a ler, a escrever a contar e tudo mais. Era um sonho impossível, já lhe tinham dito que não ia poder continuar a estudar. A menina aceitou a decisão dos pais, mas continuou sempre a aproveitar todas as oportunidades para aprender, para ler tudo o que lhe vinha parar à mão, requisitava livros na biblioteca itinerante que era uma espécie de camionete cheia de livros que percorria as aldeias de tempos-a-tempos.

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Os pais queriam dar-lhe o melhor futuro possível, livrando-a da vida dura do campo. Um dia disseram à menina que ia aprender costura com a tia Mansa. Disseram à menina que era um trabalho mais limpo, mais mimoso e mais leve do que trabalhar no campo e que como ela aprendia bem ia com certeza gostar.

A menina foi aprender a costurar, gostava de costurar, a máquina de costura e o seu funcionamento tinham alguma magia, rapidamente aprendeu o essencial. Passou a ir para a casa das pessoas com a máquina Singer que recebeu de presente aos catorze anos. Fazia calças, camisas, saias, cuecas, soutiens, ceroulas, sacas, remendava, … Todas as roupas das pessoas eram feitas pelas costureiras ou pelo alfaiate, não havia roupas feitas nas lojas para vender. Ela tinha sempre muito trabalho. Quando estava a fazer trabalhos mais monótonos imaginava como seria se fosse professora, que coisas teria de aprender para saber ensinar.

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Gostava de fazer as roupas para as pessoas, era feliz a costurar mas o seu sonho nunca foi esquecido, quem sabe se ainda ia conseguir!

14
Nov20

A Maria Birras & Alegrias

Cristina Aveiro

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Era uma vez uma menina pequenina de pele clara, carinha redonda, cabelo aos caracóis e uns olhos verde-acinzentados que só de olhar faziam mil perguntas. A menina chamava-se Maria e gostava muito de ver e entender tudo o que estava à sua volta. A sua mãe costumava dizer que a Maria estava sempre com as anteninhas no ar porque era muito atenta e queria saber as coisas, como se fazia, porque era assim, como se chamava isto e aquilo, como funcionava, … Os adultos ficavam encantados por poder falar de tantas coisas  para lhe responder às perguntas, muitas vezes ficavam algum tempo a pensar antes de lhe responderem.

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Chegou um tempo em que começaram a vir umas nuvens cheias de birras que pareciam chover em cima da Maria. Na hora do banho, quando a mãe lhe dizia que era para ir para a banheira, levantavam-se nuvens muito grandes e escuras. A menina desatava a chorar e dizia que não, não queria tomar banho, tomar banho era uma nojeira, não ia, … A mãe parecia que não ouvia, nem via a birra e com calma ia despindo a menina e dizendo que tinha que ser, que era preciso, que a água estava quentinha, que a Maria gostava de brincar com os brinquedos do banho,… mas a menina continuava na birra. Mesmo depois de entrar na água ainda continuava por mais um bocadinho. No banho parecia que a nuvem das birras tinha desaparecido, só voltava um bocadinho quando era para lavar a cabeça. Depois de estar toda lavadinha a mãe deixava-a ficar a brincar com o patinho amarelo, com o termómetro tartaruga, a râ nadadora e os brinquedos da praia que também tinham lugar nas brincadeiras da banheira.

Quando a água já estava a arrefecer a mãe dizia que o banho tinha acabado e era altura de sair, vinha novamente uma nuvem cheiinha de birras de tamanho gigante. Não, não queria sair do banho, queria ficar, não a água não estava a ficar fria, e claro era birra com choro, boca bem aberta e lágrimas a cair na água do banho.

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A mãe dizia-lhe então, mas tu nem querias vir para o banho, como é que agora não queres sair. A menina parecia nem ouvir, penso que não ouvia mesmo, é que as nuvens das birras fazem tanto barulho que ninguém se ouve quando elas estão por aí.

Com muita paciência, a toalha de banho especial com o capuz bordado com as baleias, muito mimo e creme no corpo para cuidar da pele delicada, a Maria lá ia acalmando. No fim de estar vestida era hora de ir jantar…

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Já se está mesmo a ver que as nuvens iam voltar. E voltavam mesmo, não queria ir para a mesa, não tinha fome, não gostava daquela comida, … Então o pai dizia-lhe que a ia ajudar e ao mesmo tempo lhe ia contar uma história e começava a fazer palhaçadas, então as nuvens começavam a desaparecer de novo. No fim do jantar às vezes o pai perguntava à mãe se podia ser um icecream e a menina dizia logo que sim.

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Os pais costumavam dizer alguns segredinhos entre eles em inglês, mas havia algumas palavras mágicas que a Maria já conhecia e icecream era uma delas.

Um pouco de brincadeira depois do jantar e lá chegava aquela hora de que a Maria nunca tinha gostado. A hora de ir para a cama! Claro que voltavam as nuvens, claro que não tinha sono, ainda queria brincar mais, não queria ir para a cama, só mais um bocadinho, … e pronto lá vinham os pingos da birra, lágrimas pela carinha abaixo.

Já na cama, ainda havia tempo para um  bocadinho de brincadeira com a irmã pequenina e voltava a alegria de novo.

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Quando o pai ou a mãe vinham até à sua cama, e se sentavam ou deitavam ao seu lado, lá chegava a hora de ler uma história. Muitas vezes a menina escolhia a mesma do dia anterior e ouvia-a dias seguidos e ficava feliz. A menina queria sempre mais histórias e muitas vezes a mãe dizia que estava cansada de ler e que ia contar uma história inventada. Qual é o animal da história hoje?- perguntava a mãe. A menina escolhia. Então a mãe começava,...

Era uma vez um coelhinho pequeno que não queria ficar na toca e queria ir com a mãe à horta. A mãe disse-lhe que não podia ser porque era longe e podia ser perigoso e por isso tinha de ficar. O coelhinho começou a bater com as patas no chão com força e começou a chiar fazendo muito barulho e uma grande … birra. E a história continuava.

A menina ouvia, ficava um pouco pensativa e dizia à mãe, eu já não quero fazer mais birras, mas às vezes não consigo. A mãe abraçava-a e dizia-lhe que ia conseguir, quanto mais crescia mais forte ia ser.

A menina dizia que nunca mais queria que a Maria Birras voltasse porque essa não era ela, ela era só a Maria.

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