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Contos por contar

Contos por contar

27
Mar21

Vamos ajudar

Cristina Aveiro

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Era uma vez um menino que era traquinas, sempre pronto para a brincadeira, corridas e que adorava aprender sobre tudo o que estava à sua volta. Tanto gostava de saber algumas coisas que os professores ensinavam, como gostava de saber como as outras senhoras da escola faziam os seus trabalhos, como a cozinheira tratava de fazer a comida para toda a gente na escola, ou como o senhor que consertava tudo o que não funcionava arranjava as coisas. O menino também gostava de aprender com os outros rapazes lá da escola. Interessavam-no as coisas que os mais velhos faziam, em especial os que faziam coisas diferentes e de que os adultos não gostavam. Bem cedo aprendeu a subir para o telhado do pavilhão com os mais velhos, que se esgueiravam trepando a caleira controlando quem estava a tomar conta do recreio, ou fazendo e dizendo disparates na aula para que o pusessem de castigo fora da sala e assim pudesse andar a explorar todos os cantos do enorme jardim e campos da escola sem o incomodarem.

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Tinham ficado fascinado quando um dos seus amigos crescidos tinha sido mandado de castigo para a biblioteca fazer um trabalho e fazendo de conta que estava a procurar livros, tinha passado todo o tempo a trocar os livros de lugar nas prateleiras religiosamente ordenadas com os seus número e códigos. No final o seu amigo tinha ido embora como se nada tivesse acontecido. Claro que a bibliotecária quando viu a revolução e caos que por ali havia ficou totalmente transtornada, parece até que teve um chilique e teve de ser socorrida. O menino admirava a coragem e imaginação do amigo, mas nunca seria capaz de fazer uma coisa assim, ele gostava de arriscar e até às vezes arreliar um pouco, mas não gostava de magoar as pessoas e quando fazia asneiras, desobedecia ou arreliava os adultos, assumia sempre o que tinha feito, abria a sua cara morena num sorriso largo e prontamente pedia desculpa e tinha uma atitude respeitosa. Muitas vezes quando conversavam com ele e lhe pediam que não fizesse aquelas coisas e prometesse não repetir, ele com um olhar meio triste dizia que não podia prometer porque não ia conseguir cumprir.

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Desde muito cedo o menino se habituara a ter de cuidar de muitas coisas suas e do casebre imundo onde viviam e a que chamavam casa. A sua família era diferente da dos seus amigos, sabia que tinha um pai, mas nunca o tinha visto. Vivia com a mãe e com dois cães que guardavam a entrada do pátio da casa miserável. A mãe tinha muitas dificuldades de todo o tipo, não tinha um trabalho certo, ia trabalhando aqui e ali, cultivava algumas coisas num terreno ali perto, tinham meia dúzia de galinhas e pouco mais acontecia. Nunca corria muito bem o que a mãe fazia, parecia que estava sempre na Lua, esquecia-se de regar, ou de ir para o trabalho que tinha dito que ia fazer, não reparava que a casa estava suja e não a limpava ou arrumava e tudo isto tornava a vida do menino difícil. Como viviam numa aldeia e todos se conheciam, havia sempre alguém que ia ajudando, com comida, com roupas para o menino, com uma mobília que tornasse a casa menos desconfortável e até gostariam de fazer mais, como limpar ou organizar melhor as coisas, mas a mãe do menino não autorizava porque aos olhos dela as coisas estavam como deviam estar. As pessoas da aldeia também continuavam sempre a oferecer à mãe pequenos trabalhos para ela poder ir fazer e ganhar o suficiente para viver. Sabiam que muitas vezes a mãe não conseguia fazer um trabalho como devia ser, mas preferiam pagar-lhe pelo que ela conseguia fazer do que simplesmente dar-lhe dinheiro para ajudar.

Como o menino era muito, mas muito inteligente, pronto para participar em projetos práticos e tinha aquela atitude natural de cavalheiro de sorriso do coração todos o conheciam e gostavam muito dele. Na escola conheciam as dificuldades da sua família e tentaram sempre dar-lhe o que lhe pudesse faltar no seu berço, desde coisas a afetos, conversas, conselhos e um enorme carinho. O menino sentia-se feliz e acompanhado na aldeia como na escola.

Um dia os professores estavam a organizar uma campanha de recolha de alimentos para ajudar famílias com mais necessidades e pediram a todos os alunos que pudessem para trazer de casa um alimento que não se estragasse para a recolha. Nas aulas conversaram sobre as dificuldades de algumas famílias e tinham decidido: - Vamos ajudar! Os meninos levaram até um papel para casa para darem aos pais e falarem sobre o assunto.

O menino guardou o papel para si pois a sua mãe não sabia ler e ele nem tão pouco ia falar com ela sobre a campanha. Tratou de ir ao seu mealheiro onde guardava as moedas que lhe davam quando ajudava a fazer algum pequeno trabalho aos seus vizinhos e foi à mercearia da aldeia comprar um pacote de farinha. No dia seguinte levou-o para a escola e entregou à professora. Tinha sido o único menino a trazer o alimento e notou que a professora tinha ficado estranha quando ele lhe tinha entregado a farinha. O menino perguntou então, preocupado, se não era para trazer já e a professora sossegou-o e disse que sim que ele tinha feito muito bem e que agradecia.

Logo a seguir a professora disse que tinha que ir buscar giz e saiu rapidamente da sala. Assim que os alunos já não a podiam ver as lágrimas teimosas desceram pela cara abaixo. Como é que podia ser tão verdade o que sempre tinha ouvido “quem menos tem é quem mais dá a quem precisa”.

 

 

20
Mar21

Apetece-me ir para o deserto!

Cristina Aveiro

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Estavam de regresso à escola depois de dois meses em casa por causa do maldito bicho que os tinha mantido fechados, afastado dos amigos, das pessoas e dos lugares de que gostavam.

Todos os meninos estavam felizes, cheios de energia, cheios de histórias para contar. Nas salas ficaram muito contentes por voltar a sentar-se nas suas mesas, por voltar a ocupar o seu lugar na sala de aula, por estarem ali com o professor e com todos junto deles e não no computador.

Na hora do recreio tinham toda a escola para eles porque os meninos crescidos não estavam lá. Pareciam mesmo “bandos de pardais à solta” como se cantava numa canção. Corriam, exploravam os sítios, jogavam à bola e caiam, escorregavam, parecia que tinham perdido o treino de andar a toda a velocidade como era seu costume.

As senhoras que os acompanhavam para tomar conta admiraram-se com estas dificuldades, parecia que estavam perros, destreinados, quase lhes lembravam os bichinhos que depois de um longo cativeiro tinham um andar hesitante e desajeitado, com menos equilíbrio e coordenação. Admiraram-se também com o que tinham crescido. Tal como antes, os meninos tinham voltado cheios de vontade de falar com as senhoras para contar as suas histórias, para perguntar tudo e mais alguma coisa, sobre o que ia acontecer, ou que tinha acontecido e muito mais coisas de que ninguém mais se lembraria de perguntar senão as crianças. As senhoras gostavam muito dos seus meninos, conheciam bem o bando, sabiam-lhes os nomes, os gostos, os que falavam muito e os que eram de poucas falas, os que gostavam de empurrar, arreliar, acarinhar, descobrir, … Sabiam-nos de cor, como também canta outra canção. Gostavam deles como eram, era bom haver traquinas e reguilas e calmos e sossegados, eles eram como uma orquestra, tocavam todos os sons, os calmos e os que inquietavam todos e nenhum som se podia dispensar, todos faziam falta. Os professores e as senhoras pareciam a maestrina que tocava a orquestra como num pequeno filme que aparecia por estes dias na televisão, umas vezes com movimentos tranquilos e outras num frenesim que quase parecia gritar.

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Um dos meninos, moreno, de cabelo ondulado negro e rebelde, costumava andar sempre por todo o lado em muito alta velocidade, até a falar era supersónico, nem para escutar conseguia parar, era sempre tudo a mil à hora. A sua velocidade era maior que a dos colegas e isso provocava muitas vezes “acidentes” e desentendimentos com miúdos e graúdos. Com a sua velocidade parecia impossível que reparasse nas pequenas coisas, mas seria assim?

Naquele dia de regresso o menino estava ainda com mais velocidade do que a habitual, mas isso não o impediu de reparar que uma das senhoras estava algo sombria. O menino fixou os seus olhos castanhos muito vivos nos olhos da senhora e chegou-se à conversa. Atrás da máscara e dos óculos da senhora ele viu que que os seus olhos não estavam a sorrir como era habitual. Começou por perguntar se estava boa, o que é que tinha, se estava doente, se tinha acontecido alguma coisa, … e foi saltando de pergunta em pergunta sem ficar satisfeito com as respostas.

A senhora estava  admirada por o menino ter parado as suas corridas e brincadeiras durante tanto tempo, estava surpreendida por o menino, na sua velocidade e turbulência, ter sentido o que lhe ia na alma e ela tanto queria guardar só para si.

Quando menino perguntou o que é que apetecia à senhora, ela respondeu calmamente: “Apetece-me ir para o deserto!” em jeito de suspiro. Pensava que ele ia ficar satisfeito com a resposta e que ia voltar às suas brincadeiras já com a curiosidade satisfeita. Mas o menino continuou com as perguntas, quis saber porque é que a senhora queria ir para o deserto, ao que ela respondeu que era para estar sozinha. O menino parou um pouco a pensar e pediu para ir buscar um papel para fazer um desenho. A senhora disse que sim, ficando cada vez mais admirada por ele preferir desenhar a estar nas correrias e brincadeiras. Quando voltou para junto dela começou a desenhar um deserto com catos e uma senhora. Quando ela lhe perguntou quem era, ele respondeu prontamente: - És tu!

O menino continuou a desenhar, desenhou-se a si também no deserto, a senhora perguntou porque é que ele também estava no deserto. O menino respondeu que era para estar com ela e assim ninguém estava sozinho.

A senhora estava comovida, mas para disfarçar perguntou se não havia mais nada no deserto e o menino desenhou um passarinho e continuou a desenhar. Desta vez desenhou um avião com duas pessoas lá dentro, muito parecidas com a senhora e o menino. A seguir desenhou pequenas setas a ligar as imagens deles no deserto às imagens deles no avião. A senhora estava deslumbrada com o que o pequeno ia fazendo e perguntou-lhe então o que era tudo aquilo, o avião, as pessoas no avião e as setas. Disse-lhe que já não estava a perceber o desenho porque queria ouvir o que o menino tinha para dizer.

O menino explicou com calma, as pessoas no avião “és tu e eu” e as setas querem dizer que deixámos o deserto e que vamos embora no avião. Finalizou dizendo: - Toma, o desenho é para ti! E largou a correr juntando-se de novo ao bando.

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Ao agarrar o desenho a senhora estava a sorrir e sentia um calor enorme no coração. Como é que aquele pequeno diabrete vira o que ela queria esconder, como é que ele estivera parado tanto tempo a escutar, a acompanhar e finalmente como desejara que juntos saíssem do lugar triste. Como é que ele era tão sábio? Claro que era! Ele era uma criança, um diabrete com asas de anjo.

 

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