Avô, porque tens abelhas no quintal?
Memórias doces do meu avô Manuel Saco !
Era uma vez uma menina que adorava ir à casa dos avós, em especial ao quintal que havia atrás da casa. O quintal era todo rodeado por um muro de pedra “insonsa”, ou seja, tinha sido cuidadosamente com pedras irregulares grandes e pequenas pousadas de modo a ficarem perfeitamente encaixadas e que subiam a uma altura grande sem terem mais nada a segurar.
No quintal havia um grande cercado com as galinhas e os galos, tinha ameixieiras lá dentro, era enorme. Do outro lado havia as coelheiras construídas em madeiras, com telhado em telhas vermelhas e umas portas em rede com buracos em forma de bolas, lá havia coelhos de todos os tamanhos e cores. Havia mais de dez laranjeiras enormes, com folhas de um verde escuro e onde havia sempre laranjas. Os seus troncos eram muito grossos, até pareciam de pinheiros velhos. Os troncos e ramos das laranjeiras eram verdes, cobertos de musgo muito baixinho. Nessa zona do quintal não se conseguia ver o céu, as densas copas das laranjeiras não deixavam o sol chegar ao chão.
Lá mais para o fundo do quintal, não havia árvores e era uma zona cheia de sol, flores e colmeias de abelhas que assustavam a menina. Bastava aproximar-se daquela zona para o som das abelhas a voar a fazer ficar com medo. Havia umas tábuas que formavam uma espécie de banco onde estavam pousadas seis cascas de sobreiro que quase pareciam troncos, só que eram apenas a cortiça que antes cobria o tronco. O avô chamava-lhe cortiços e dizia-lhe que eram casas para as abelhas. A menina achava que pareciam um pouco casas porque até tinham telhas a cobrir o topo, mas não tinham janelas, havia apenas uma fenda horizontal em baixo com uma espécie de rampa para entrar.
A menina tinha perguntado ao avô:
- Avô, porque tens abelhas no quintal? Elas podem picar-nos e são perigosas. Eu tenho muito medo delas.
O avô tinha-lhe dito que as abelhas eram as suas amigas doces. Eram elas que faziam o mel que usavam lá em casa para adoçar o café, o cacau, os bolos dos Santos e era também um ótimo remédio quando se estava constipado ou com dor de garganta. O avô levou a menina até à cozinha e mostrou-lhe o enorme frasco de vidro com uma boca bem larga e uma tampa esmerilada de vidro que até parecia das farmácias antigas. O frasco estava meio cheio de mel escuro e muito espesso. Noutro frasco mais pequeno tinham mel em favos de cera nova que também estava muito bem fechado.
O avô tirou uma colher pequenina com o mel espesso e deu à menina, ela olhou para a cor escura que parecia caramelo, sentiu aquele cheiro doce e quente do mel “velho”, viu o granulado que parecia grãos de açúcar e fez o que o avô lhe dizia, pôs na boca como se fosse um chupa e saboreou devagar. Era muito forte o sabor! O avô disse-lhe para ir chupando devagarinho, não era para comer, era para sentir e saborear.
O avô disse-lhe que depois de ter acabado aquela guloseima estava pronta para ir ver as obreiras mais de perto. A menina disse que tinha medo, mas o avô disse que não havia nada a temer. Tinham de se aproximar das colmeias devagar, com movimentos suaves, respeitando as viagens das abelhas. A menina lá foi apertando muito a mão grossa e calejada. Sentaram-se no banco onde estavam pousados os cortiços e o avô foi mostrando como elas iam e vinham, mostrou as patinhas cheias de pólen, mostrou como elas aproveitavam as flores da avó ali do quintal para colher o néctar com que faziam o mel.
Elas iam até às zínias, sécias, brincos de princesa e mesmo aos pampilhos e malmequeres selvagens que havia por ali. O avô mostrou também a taça larga de barro com água que ele tinha ali no banco para as abelhas terem sempre água por perto. A menina aos pouco foi ficando com menos medo, embora se mantivesse muito quieta, e estava a adorar poder ver as temíveis abelhas tão de perto e tão entretidas na sua vida que não queriam saber nem da menina, nem do avô. As abelhas eram muito ocupadas e estavam sempre com pressa a trazer néctar e pólen e a voltar de novo às flores.
O avô disse que mais tarde ia retirar os favos de mel dos cortiços porque já estava na altura certa. A menina ficou admirada, como vais conseguir tirar os favos, lá dentro está tudo cheio de abelhas, vais incomodá-las, vão ficar zangadas e vão-te picar todo!!!
O avô explicou que havia um truque que era usado há muitos, muitos, anos, usava-se uma engenhoca que fazia um fumo espesso que ajudava a acalmar as abelhas quando se ia mexer na colmeia. Para fazer o fumo usava-se bostas de vaca secas e ervas meio secas. O defumador tinha um fole que fazia sair mais ou menos fumo conforme a agitação das abelhas. As abelhas reagem ao fumo, não se sabe se é por reagirem à aproximação de um fogo, e se organizam para reagir ao fogo, ou se é porque o fumo as põe tontas e incapazes de ficar agressivas. O certo é que elas com o fumo não atacavam o invasor.
O avô disse à menina que ela podia ver tudo da janela da sala da casa, mas que não podia vir cá para fora porque mesmo com o fumo ia haver algumas abelhas zangadas.
Quando chegou o dia de tirar o mel, a menina ficou com a carinha colada à janela a ver todos os passos. Viu o avô colocar o cócó de vaca seco e as ervas no defumador, acender, começar a mandar o fumo com o fole à volta do primeiro cortiço. Passado algum tempo o avô retirou as duas telhas que faziam de telhado da colmeia, e lentamente metia a mão lá dentro e cuidadosamente cortava com a navalha pedaços dos favos e colocava numa panela alta de alumínio. Ia tirando favos claros quase cor de caramelo leve, outros mais escuros e alguns quase de um tom acastanhado. Em cada cortiço o avô via cuidadosamente para não retirar o sítio onde estavam as abelhas que iam nascer e também tinha cuidado para manter a abelha-rainha dentro do cortiço no final da colheita. O avô já lhe tinha dito que nunca se retirava todo o mel, afinal ele era a reserva de alimento para as abelhas, só podiam retirar o que não lhes ia fazer falta, o resto ficava para elas poderem viver nas alturas em que não havia néctar, nem pólen para produzirem mais mel.
Quando tudo acabou, o avô trouxe a grande panela para a cozinha e ficaram a ver como os favos eram perfeitos e tinham cores bonitas. A menina viu que os favos tinham uma espécie de tampa que fechava o hexágono para o mel não sair. O avô escolheu um dos favos mais claros, de mel novo, que tinha ainda um forte cheiro e sabor a flores e cortou uns bocadinhos que pareciam rebuçados e deu à menina. Disse-lhe para pôr na boca, deixar sair o mel e chupar e depois deitar fora a cera. A menina assim fez e ficou deliciada. O avô também fez o mesmo e perguntou:
- Então meu amor, já sabes porque tenho abelhas no quintal?
A menina respondeu com um sorriso lambuzado e feliz.