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Contos por contar

Contos por contar

16
Mai21

O Alberto tem dor de barriga!

Desafio dos Pássaros 3.0 - Tema 1

Cristina Aveiro

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Foto: Artur Pastor

 

Alberto era um rapaz do campo, levava uma vida simples entre as tarefas que os pais lhe destinavam e a escola que não o interessava quase nada. O que fascinava o rapaz era descobrir os ninhos, conhecer os pássaros, as árvores, ir pescar enguias na ribeira com um açude de pedras e um garfo como o pai lhe tinha ensinado, ensinar os rafeiros para a caça, ir caçar com o pai,...

Gostava de aproveitar para ir correr todos os caminhos da aldeia e redondezas. Sempre que o mandavam para mais longe fazer recados, ir buscar feixes de vides, erva ou mato para as camas dos animais ia sempre dar umas voltas por onde não lhe tinham mandado. Tinha que ir fazer as suas investigações, descobrir onde havia tocas de coelhos, estudar as pegadas do chão, as caganitas que os animais iam deixando na terra dos bosques e pinhais. Muitas eram as vezes em que os seus passeios eram descobertos pelos pais, ou porque não tinha ido buscar o número de feixes determinado, ou porque alguém o tinha visto onde não era suposto estar, ou até porque tinha ido apanhar maçãs ou pêssegos a campos de outros donos.

Ele sabia que estava a pisar o risco, mas para ele valia bem a pena arriscar e ir ver o seu mundo do que andar só a fazer as tarefas aborrecidas que lhe mandavam.

Claro está que para fazer as tarefas da escola também lhe era difícil ter vontade e muitas vezes só na manhã seguinte quando o acordavam para se lavar, comer e ir a pé para a escola é que ele se ficava a ralar por não ter feito os trabalhos. Nas primeiras vezes pensou que o professor talvez não reparasse que ele não tinha feito os trabalhos. Rapidamente percebeu que isso não acontecia, e nesse tempo acreditava-se que com umas reguadas nas mãos, as crianças mudavam o seu comportamento. O professor deu muitas vezes reguadas nas mãos do Alberto por ele não fazer os trabalhos, mas ele mesmo assim nem sempre os fazia.

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Numa dessas manhãs, cheio de medo das reguadas que o esperavam na escola, decidiu que não ia à escola e disse à mãe que lhe doía muito a barriga e começou a gemer. A mãe ficou preocupada porque era frequente as crianças apanharem febres e doenças na barriga e disse ao pequeno que já lhe ia esfregar a barriga com um pouco de azeite para ver se ele melhorava. Deu-lhe apenas um bocadinho pequeno de miolo de broa porque disse que se lhe doía a barriga era melhor não comer muito. O Alberto lá teve de se aguentar com a fome porque aquele bocadito de broa era muito pouco, mas teve que manter as aparências.

Depois de a mãe lhe massajar a barriga, disse-lhe para ficar mais um bocado na cama enquanto ela ia para o campo. Ele esperou que a mãe saísse com o posseiro e a enxada e pouco depois abalou para o mato da charneca onde os amigos lhe tinham dito que havia um ninho de perdiz. Esquecido das horas, já o sol ia alto quando voltou em grande corrida para casa e se enfiou na cama a escorrer suor e vermelho como um tomate.

A mãe mal chegou a casa foi logo ter com o seu rapaz ao leito e ficou preocupadíssima por o encontrar tão suado e quente. Ficou a achar que era febre intestinal, tinha sido assim com o rapaz da Jacinta e ele quase tinha morrido. Saiu do quarto e sentou-se junto ao lume a chorar e a pensar no que devia fazer. Decidiu ir até casa da Jacinta e perguntar o que tinha feito para tratar o filho. O Alberto ficou um bocado ralado com a mãe quando a viu tão preocupada, mas não tinha coragem para lhe dizer a verdade e continuou enfiado na cama.

Quando a mãe chegou a casa da Jacinta e lhe disse ao que ia a mulher ficou muito admirada. Disse logo que tinha acabado de ver o Alberto a correr cheio de genica na subida para casa?! A mãe percebeu logo que era mais uma das trafulhices do pequeno, agradeceu e voltou para casa a voar.

Voltou ao quarto e começou a perguntar ao pequeno como se sentia, se não seria melhor ir ao médico, onde era a dor e mais e mais a ver se ele confessava. A dada altura ela já estava vermelha de fúria e o pequeno percebeu que não ia correr bem. Houve um passarinho que te viu a subir para casa a correr à bocadinho, disse-lhe a mãe. Levanta-te imediatamente! Vamos comer e vais passar a tarde a trabalhar ao meu lado e tens que me contar muito bem porque é que não quiseste ir à escola. Se demorares muito, pomos pés ao caminho e vou até à escola perguntar ao professor o que se passa.

O rapaz lá foi dizendo que não tinha feito os trabalhos e que ia levar reguadas. Explicou que lhe parecera melhor dizer que estava doente. A mãe disse que daquela vez passava, mas ia fazer todos os trabalhos da escola quando voltassem do campo e que ficava de castigo sem poder ir a lado nenhum sem ser acompanhado enquanto não se emendasse.

O rapaz ficou aliviado, mas triste por não poder andar pela aldeia à vontade com o resto da rapaziada, jogar ao pião, caçar com a fisga, …

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Foto: João Martins

Durante uns tempos o Alberto conseguiu cumprir as suas obrigações sem tropelias, mas ele já começava a sentir que talvez não conseguisse ser sempre assim. Quem ia saber? Talvez conseguisse.

 

 

Texto no âmbito do Tema 1 do Desafio dos Pássaros - 3.0 que nos dava como mote "Foi o que ouvi", de modo implícito, mas sem mencionar directamente. 

Este texto procura retratar aqueles rapazes do campo com "a fisga no bolso de trás" e as muitas histórias de tropelias que escutei quando criança sobre um familiar muito próximo.

 

28
Nov20

A menina que queria ser professora

Cristina Aveiro

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Há muito, muito tempo, uma menina pequena, calma e alegre vivia numa pequena aldeia onde todos eram pequenos agricultores e viviam com muita simplicidade. Todos os dias era preciso ir buscar a água à fonte para poderem lavar-se, cozinhar e mesmo dar aos animais.

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Eduardo Gageiro

Não havia eletricidade e usavam candeeiros que queimavam combustível para dar luz. A comida era feita à lareira com o calor da lenha que se queimava. A roupa era lavada no ribeiro ou junto a poços de onde se tirava a água, o único detergente era o sabão azul.

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                                          Artur Pastor

Desde muito cedo todos trabalhavam para a família ter o suficiente para viver. Havia incontáveis tarefas da agricultura que incluíam semear, regar, apanhar alimento para os animais, colher frutos, feijões, milho, batatas, …

img-8-small700.jpg                                                  Artur Pastor

Em casa também havia sempre muitos afazeres, desde cuidar dos animais, amassar e cozer a broa, fazer a sopa, passar a ferro com o ferro a carvão. À noite no verão costumavam juntar-se numa eira ou num pátio com vizinhos e amigos a contar histórias antigas, a cantar e quando havia alguém que savia tocar concertina ou realejo era uma festa. 

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Quando a menina fez sete anos começou a ir à escola, ia um grupo de meninos da aldeia até ao lugar onde havia a escola mais próxima. A primeira vez foi um adulto com eles para aprenderem bem o caminho, mas depois já iam sozinhos a pé durante mais de meia hora. Os meninos da aldeia tinham todos roupas parecidas, feitas de chita ou outros tecidos modestos e iam todos descalços porque não tinham sapatos. Na escola havia meninos que viviam mesmo junto à escola e que tinham roupas um pouco melhores e usavam sapatos, mas todos estavam lá para aprender e o resto não importava.

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A menina ficou fascinada com a sua professora, era bonita, tinha a pele muito clara, roupas claras e muitos limpas, como se fossem roupas de domingo. As mulheres que a menina conhecia vestiam roupas escuras, grosseiras, tinham a pele escurecida pelo sol e pareciam mais cansadas e impacientes. Ali começou uma aventura fascinante de descoberta das letras, dos números, das contas, da história do seu país. A menina não perdia uma palavra do que dizia a professora, tudo a deixava quase sem conseguir respirar para não deixar fugir alguma coisa importante. Aprendeu a ler correctamente muito depressa e às vezes a professora chamava-a, punha-a no seu colo para que todos a pudessem, ver melhor e pedia-lhe para ler para os outros alunos. Nestes momentos a menina sentia uma alegria como nunca tinha sentido antes.

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Quando regressava da escola ia logo fazer as tarefas que a mãe lhe tinha destinado e assim que podia ia ler os livros da escola porque lá em casa não havia mais livros. À noite depois de terem jantado quando a família ficava à volta da lareira antes de se irem deitar, a menina gostava de conversar sobre a escola e de ler alto para todos quando lhe deixavam. Apenas o pai sabia ler, a mãe não, mas sabia fazer contas sem nunca ter ido à escola.

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À medida que ia crescendo a menina era ensinada a fazer todas as coisas que as mulheres da aldeia deviam saber para poderem tomar conta de uma casa e cuidar das terras. A menina gostava de aprender também a fazer estas tarefas, mas na escola o que aprendia era surpreendente, falava-se de coisas que nunca tinha ouvido, visto ou imaginado.

Os anos passaram e a menina fez os quatro anos de escola e a sua adorada professora disse aos seus pais que a menina estava preparada para fazer o exame da quarta classe. Um dia lá foi a menina com as suas tranças bem apertadas, num fato de domingo, com sapatos e tudo a uma escola na cidade. Foi um dia inesquecível, houve algum receio, mas tudo correu bem e a menina teve uma nota brilhante. No final até houve tempo para ir ao parque infantil andar nos baloiços.

 

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No final desse dia, a professora disse aos pais da menina que ela tinha muito talento, era muito inteligente e que era muito importante que continuasse a estudar. Naquele tempo quase todos os alunos só estudavam até ao quarto ano. Havia escolas para continuar a estudar, mas só na cidade e não era possível ir e vir todos os dias a pé uma criança tão pequena.

Os pais ficaram a pensar no que a professora tinha dito, mas eles não tinham posses para dar os estudos à menina e também tinham muito medo de a deixar ir sozinha para a cidade para a casa de alguém para poder continuar a estudar. Na aldeia todos deixavam a escola no quarto ano, eles estavam contentes por haver escola para os seus filhos, porque eles nem sequer tinham ido à escola, pensavam que já seria o suficiente.

A menina ficou profundamente triste por no ano seguinte não voltar à escola, nunca tinha dito a ninguém mas o seu sonho era ser professora e ensinar meninos a ler, a escrever a contar e tudo mais. Era um sonho impossível, já lhe tinham dito que não ia poder continuar a estudar. A menina aceitou a decisão dos pais, mas continuou sempre a aproveitar todas as oportunidades para aprender, para ler tudo o que lhe vinha parar à mão, requisitava livros na biblioteca itinerante que era uma espécie de camionete cheia de livros que percorria as aldeias de tempos-a-tempos.

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Os pais queriam dar-lhe o melhor futuro possível, livrando-a da vida dura do campo. Um dia disseram à menina que ia aprender costura com a tia Mansa. Disseram à menina que era um trabalho mais limpo, mais mimoso e mais leve do que trabalhar no campo e que como ela aprendia bem ia com certeza gostar.

A menina foi aprender a costurar, gostava de costurar, a máquina de costura e o seu funcionamento tinham alguma magia, rapidamente aprendeu o essencial. Passou a ir para a casa das pessoas com a máquina Singer que recebeu de presente aos catorze anos. Fazia calças, camisas, saias, cuecas, soutiens, ceroulas, sacas, remendava, … Todas as roupas das pessoas eram feitas pelas costureiras ou pelo alfaiate, não havia roupas feitas nas lojas para vender. Ela tinha sempre muito trabalho. Quando estava a fazer trabalhos mais monótonos imaginava como seria se fosse professora, que coisas teria de aprender para saber ensinar.

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Gostava de fazer as roupas para as pessoas, era feliz a costurar mas o seu sonho nunca foi esquecido, quem sabe se ainda ia conseguir!

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