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Contos por contar

Contos por contar

18
Set22

"partilha palavras de sabedoria que alguém te disse um dia"

52 semanas de 2022 | tema 32

Cristina Aveiro

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A menina Emília, uma senhora  idosa, sábia e com uma enorme capacidade de viver de forma feliz, não se casara e vivia com as irmãs também solteiras e com o irmão. Eram uma família harmoniosa, ativa na sociedade, sendo os irmãos agricultores e ela contínua muito respeitada de uma grande escola secundária da cidade.

Já os conheci quando viviam a fase final das suas vidas, gostava muito de conversar com a menina Emília. Gostava também de lhe fazer pequenas provocações dentro dos limites do respeito e educação. Numa dessas conversas algo provocatórias eu defendia que ser mais jovem correspondia sempre a uma situação de vantagem face aos idosos. O jovens eram mais belos, até as pessoas feias quando jovens eram mais bem parecidas, eram, em geral mais saudáveis, podiam fazer mais coisas, enfim... A menina Emília escutou-me com atenção e quando eu esgotei os argumentos ela disse-me serenamente:

- Há uma enorme vantagem dos idosos face aos jovens. Os idosos têm a garantia da vida vivida, enquanto que os jovens têm uma enorme incerteza relativamente ao que virá a ser a sua.

Matutei bastante tempo sobre esta forma de pensar, aliás ainda hoje penso nela. É um pouco como "mais vale um pássaro na mão que dois a voar". Quando a passagem do tempo me trás alguma contrariedade em termos físicos, vem-me sempre à mente que esse é o preço a pagar por já ter vivido, e que isso foi muito bom.

 

Texto no âmbito do desafio 52 semanas de 2022 lançado pela Ana de Deus no seu blog busy as a bee on a rainy day.

 




02
Set21

O que se passa com o avô?

Cristina Aveiro

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Todos os dias o menino ia passar algum tempo na casa dos avós, tinha sido sempre assim desde que ele se lembrava. Gostava daquele lanche especial que a avó lhe preparava, das surpresas que lhe fazia, como pipocas doces, ou aquele refresco que ele nunca tinha provado noutro lugar. Havia também o jardim, o quintal com a horta, as galinhas, os patos, aquela liberdade de explorar, cair, sujar-se, limpar-se na torneira do quintal, tudo aquilo era um ninho de liberdade que lhe parecia do tamanho do mundo.

A avó era a rainha suprema de todos aqueles domínios, sabia sobre as plantas, os animais domésticos e tantos outros que por ali apareciam. Os pássaros eram aos montes, mas nem sempre a avó ficava contente com eles, quando era o tempo dos dióspiros, das nêsperas, das nozes, enfim dos frutos apetitosos lá andava a avó a cobrir as árvores com rede fina, ou a pendurar coisas brilhantes ou que fizessem barulho nas árvores, senão os marotos dos pássaros comiam a maior parte da fruta, ou então debicavam e depois a fruta estragava-se. O menino admirava-se porque sabia que a avó gostava de pássaros e achava que não fazia mal eles comeram também os frutos. Conversavam muitas vezes sobre o assunto, mas nunca chegavam a acordo e a avó continuava com as suas engenhocas. O menino pensava que quando tivesse um quintal seu ia deixar os pássaros comerem tudo o que quisessem.

Já mais ao fim do dia, quase ao anoitecer chegava o avô e o menino corria para ir ter com ele. Adorava quando conseguia chegar ao avô antes de ele sair do carro. Assim passava um bom bocado com o avô a explicar-lhe tudo sobre o carro, ou a ajeitar a bicicleta do menino, ou a verem coisas na bancada de trabalho e ferramentas do avô. Outras vezes o menino já encontrava o avô na sala e então ficava ali à conversa. O menino queria saber sobre como funcionavam as máquinas, porque havia a chuva e o vento, como tinham construído os castelos, de onde tinham vindo os bichos-da-seda, … aos poucos o menino ia descobrindo e alargando o seu mundo de criança. O avô sabia sobre muitas coisas, mas às vezes ia ver a livros ou perguntava à avó para responder. Explicava com paciência, atento ao neto e nunca se esquecia do que tinham conversado noutros dias.

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O avô chegava cansado do trabalho e às vezes agitado, mas assim que o neto aprecia tudo isso desaparecia e era como se um novo dia tivesse acabado de começar.

Depois o menino regressava a casa com os pais cansado, com as roupas sujas e com uma esfoladela no braço ou na perna, mas o banho levava todos esses pormenores. E chegava então o jantar e a hora dos mimos dos pais.

O tempo foi passando, o menino ia crescendo e continuava a ir todos os dias a casa dos avós. O avô começou a chegar mais cedo do trabalho, vinha ainda mais cansado do que antes e explicaram ao menino que o avô ia deixar de ir trabalhar porque já tinha muitos anos e ia passar a ter mais tempo livre. O menino ficou radiante! Agora tinha sempre o avô e a avó ao final do dia só para ele. Iam passear, de carro ou a pé, conversavam, tratavam do quintal e do jardim, nunca paravam de fazer coisas e de inventar coisas para descobrir.

Um dia o menino reparou que o avô não se lembrava de onde tinham ido no dia anterior, noutro dia o avô disse que tinha de ir fazer uma coisa que já tinha feito, noutro perguntou-lhe a mesma coisa três vezes e parecia nunca se recordar de ter perguntado antes. Aos poucos estas coisas estranhas começaram a acontecer cada vez mais. O menino ficou perturbado, o avô não parecia o avô.

O menino conversou com os pais sobre o que o preocupava, e disse-lhes que parecia que o avô estava doente. Os pais explicaram que já andavam há algum tempo para terem uma conversa importante sobre o avô, mas que tinham decidido esperar até que o menino notasse alguma mudança no avô.

O menino ficou a saber que o avô ao envelhecer estava a ter problemas com a memória e mesmo com a vontade de fazer coisas e divertir-se. Explicaram que estava a ser tratado pelos médicos, mas que o que era mais importante era que os que mais amava o ajudassem a continuar a descobrir o mundo como tinha feito antes. O avô não precisava que lhe dissessem que já tinha perguntado antes, ou que se aborrecessem por ele não se lembrar do que tinha combinado, ou de onde tinha posto alguma coisa. Afinal quando o menino era pequenino também perguntava a mesma coisa muitas vezes, queria que lhe voltassem a contar a mesma história vezes sem fim e ninguém se aborrecera com isso. Agora era o avô que precisava desse carinho.

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Os pais disseram que era muito importante contar coisas novas ao avô, jogar jogos com ele, passear sem ser sempre pelo mesmo caminho, fazer coisas diferentes e que agora o menino já mais crescido podia ajudar muito o avô a continuar ativo e a manter-se a descobrir o mundo e a ser feliz.

O menino, que já era um rapaz sentiu-se importante nesta sua missão de cuidar e retribuir ao avô o enorme carinho que tinha recebido dele ao longo da vida. Agora trazia amigos para se juntarem a ele na casa dos avós e juntos traziam vida à casa, enchiam-na de gargalhadas, pediam ao avô para contar histórias antigas, ajudavam a avó a fazer os lanches, cuidavam do jardim e do quintal. Um dos amigos tocava guitarra e passou a haver cantorias, descobriram que o avô também sabia tocar, a avó sabia muitas cantigas de outros tempos que todos foram aprendendo. Havia um ambiente de festa que enchia de sol e calor aquela casa grisalha.

O avô continuou a ser cada vez mais diferente do que tinha sido, mas o menino continuou sempre a voltar, a conversar, a jogar, a tocar, enfim a cuidar com muito amor de quem com tanto amor o tinha ajudado a crescer.

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12
Dez20

A Casa Sem Fim

Cristina Aveiro

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Era uma vez um casal de idosos que tinham uma casa na praia. Era uma casa estranha porque parecia que continuava sempre a estar em construção. Eles tinham começado a fazer aquela casa quando ainda era muito novos e nem sequer tinham filhos. Fizeram os projetos, vieram os pedreiros, construíram e puseram o telhado, as janelas, a porta. Mas havia partes da casa que continuavam por completar, o portão da garagem era feito de tábuas da obra, pelo quintal estavam tábuas, andaimes, a máquina de fazer a massa, areia, cimento, as varandas não tinham grades,… enfim estava meio feito, meio por fazer.

Durante muitos anos tudo ficou assim, parecia que o tempo tinha parado, que tinham interrompido o filme. As persianas das janelas já estavam a ficar velhas, as paredes da casa já tinham rachas e havia zonas onde tinha caído a cobertura das paredes como acontece nas casas muito velhas, mas aquela casa era estranha, por um lado já estava velha, mas por outro lado, ainda não estava terminada.

Um dia o casal voltou e instalou-se no primeiro andar da casa. Começaram a trabalhar os dois na casa. Primeiro retiraram o telhado, as telhas, a estrutura, depois começaram a erguer paredes e construíram mais um andar, e a seguir ainda outro, e a cobertura. Esta nova zona tinha aberturas de janela muito maiores, mais modernas, mas em baixo tudo estava na mesma. Até o portão da garagem provisório em tábuas continuava lá.

O senhor costumava andar com um gorro vermelho na cabeça, botas grossas e calções compridos, a senhora usava lenços na cabeça, calções longos e camisolas largas de trabalho. Estavam sempre só os dois a trabalhar, a subir os materiais com um pequeno guincho, a acabar uma parede, a montar um andaime, … Tudo era calmo na forma de eles trabalharem e era também estranho e diferente. A senhora estava a pintar a parede do lado de fora da zona mais alta da casa, mas ao lado havia uma zona onde os tijolos ainda nem sequer tinham sido cobertos com massa.

A casa sem fim.jpg

Quando as pessoas passavam por ali ficavam sempre a olhar e estranhavam aquela casa que era diferente de todas as que tinham visto. Às vezes eles almoçavam no topo da casa num terraço em construção, pareciam estar numas férias de sonho, tal era a alegria que transmitiam a quem os via.

Os anos foram passando e aqueles idosos continuavam sempre os trabalhos, iam acabando as zonas novas que tinham construído na sua forma desordenada que costumavam seguir. Quando tudo o que estava de novo ficou terminado começaram a reparar e a remodelar as zonas mais antigas que já precisavam de obras. Agora os trabalhos andavam muito mais lentamente, eles estavam mais velhos, tinham menos força e energia, mas continuavam a trabalhar.

Veio um dia e eles não trabalharam, depois outro e outro e continuaram a não ser vistos nas suas tarefas de construção. Os vizinhos das casas à volta estranharam e foram ver o que se passava. Os idosos estavam na casa, sentados, com um ar muito desanimado e triste. Os vizinhos perguntaram o que se passava e eles disseram que já não conseguiam fazer os trabalhos na casa porque os seus corpos já não tinham energia e força e que não  terminar a casa antes de morrer os deixava muito tristes.

Os vizinhos sentiram que tinham que ajudar a cumprir o sonho daqueles idosos que há tantos anos os intrigavam com as suas estranhas obras intermináveis. Organizaram-se em equipas e depois de escutarem os planos que o casal tinha por concretizar puseram mãos à obra.

Como eram muitos conseguiram terminar tudo o que estava planeado em menos de um ano.

Finalmente a casa estava terminada, era estranha e diferente de todas as daquela praia, e mesmo de todas as praias conhecidas.

No jardim da casa fizeram uma grande festa para alegrarem o casal de idosos que estava contente e agradecido. A casa passou a atrair visitantes e todos os locais para a verem, e durante alguns anos ainda podiam ver o casal de idosos que descansava na varanda orgulhoso da sua obra. Os vizinhos passaram também a fazer parte dos últimos anos da vida do simpático casal.

Quando morreram a casa foi oferecida àquela comunidade para servir de abrigo às pessoas que precisavam e também para as crianças virem para aquela praia para colónias de férias.

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