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Contos por contar

Contos por contar

06
Set21

Um ato de coragem

#3 - Desafio 30 dias de escrita da Ana de Deus

Cristina Aveiro

Joaquim Carreira-1.jpg

Aos 32 anos Joaquim Carreira acabava de se tornar vice-reitor do Colégio Pontifício Português de Roma e iria desempenhar esse cargo durante quase toda a Segunda Guerra Mundial. Era um homem apaixonado por voar, “ver a terra do alto” e por fotografia, seguia com sentido de missão as tarefas que a vida eclesiástica lhe iam atribuindo. Ao longo da Segunda Guerra, enquanto o Vaticano seguia uma política cautelosa, de uma difícil neutralidade, Joaquim Carreira, vice-reitor do colégio, tomava uma posição corajosa. De acordo com o que deixou nos relatórios “Concedi asilo e hospitalidade no colégio a pessoas que eram perseguidas na base de leis injustas e desumanas”. Acolheu muitos refugiados, professores, médicos, advogados, socialistas, pessoas que pertenciam ao exército italiano, mas que não concordavam com o sistema, políticos e civis, fascistas, antifascistas, judeus e não judeus, que estavam na lista de perseguidos. De acordo com testemunhas da época “Todos os que batiam à porta ele acolhia“, mesmo que não ficassem no colégio (como por exemplo as mulheres) encontrava soluções envolvendo outras instituições ou mesmo famílias nos arredores de Roma.

Uma das enormes dificuldades que enfrentou foi alimentar os que acolheu e deu a acolher, conduzindo o carro do colégio saía de Roma, furtando-se à vigilância dos soldados nazis e ia às aldeias vizinhas em busca dos alimentos. De acordo com o que relatou «Se não fosse o caminho percorrido pelos arredores de Roma a fim de adquirir mais barato o alimento para os habitantes do colégio, não sei o que seria. Conhecia moleiros, padeiros, leiteiros, agricultores e nessa altura tive de reforçar compras e fornecedores.».

Joaquim Carreira foi um dos inúmeros heróis que se colocaram em risco para salvar vidas durante a Segunda Guerra Mundial, nasceu no meu concelho em Souto de Cima.

 

 

Texto escrito no âmbito do desafio 30 dias de escrita lançado pela Ana de Deus, e em que participam Ana de Deusbii yueJoão-Afonso MachadoJorge OrvélioJosé da Xã, e Maria Araújo .

 

 

08
Mai21

A Liberdade

Cristina Aveiro

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A Liberdade

 

A liberdade é andar nua e descalça.

Nadar no mar e mergulhar.

A liberdade é abraçar quem se ama

Com força e com todo o corpo.

A liberdade é dizer e pensar o que se bem entende,

Defender as causas que se entendem justas sem respeitos tolos.

A liberdade é dizer que o rei vai nu

Quando todos sorriem e fazem vénias de cobardia.

A liberdade é branca como as gaivotas que morrem aprisionadas

Precisa de espaço, luz, campo, praia, mar.

A liberdade é sonhar, escolher, fazer por si e por todos

Porque se quer, para trilhar o caminho escolhido.

A liberdade permite-nos ignorar o que pensam e dizem de nós

Pensem e digam o que quiserem porque nós Somos.

A liberdade está nas pequenas e nas grandes coisas,

É grandiosa e ao mesmo tempo atenta à pequenez.

A liberdade também é Abril, os cravos, o povo

Mas há tanto de Abril que se esfumou em livres bolsos.

A liberdade de Abril devia ser mais exigente com quem nos representa

Devia haver rostos com quem cada voto pudesse falar a pedir contas.

A liberdade precisa de justiça justa, eficaz, rápida, transparente

A opacidade surda da justiça dos ricos e da justiça dos pobres corrói.

Acredito na Liberdade, no Amor, na Paz, no Respeito pelas Gentes e pela Natureza!

Sou talvez crédula, mas sou livre de o ser.

 

 

Fui desafiada pela MJP do blog  liberdade aos 42  para escrever sobre o que é a Liberdade para mim e é assim que a vejo hoje.

 

16
Jan21

Jeremias, o burro pensativo

Cristina Aveiro

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Era uma vez um burro chamado Jeremias que vivia numa quinta com muitos animais. Jeremias era muito estimado e respeitado pelo seu dono, podia dizer-se que eram companheiros. Ao contrário do que era costume lá na vila o dono tinha-lhe dado um nome. Jeremias dava grande importância a que não lhe chamasse apenas burro como acontecia a tantos burros que conhecia. Nas quintas havia sempre animais com nome, como os cães, os cavalos, os gatos, as cabras e as ovelhas, mas outros animais como as galinhas, os patos, os porcos ou os burros não tinham nomes. Parecia que havia animais que mereciam respeito e ser vistos como únicos pelos donos e outros não. Jeremias sentia, pois, orgulho por ter um nome, e em ser conhecido por todos na vila pelo seu nome e não apenas como o burro do seu dono.

 Ser burro trazia logo à partida um conjunto de dificuldades à sua vida. Todos achavam que era teimoso, que não conseguia aprender as coisas. Além disso, qualquer um que se aproximasse pensava que podia começar a mandar nele e a obrigá-lo fazer o que entendesse. Jeremias, como todos os burros, não confiava na primeira pessoa que chegasse perto dele, claro que se não confiava, fazia apenas o que a ele, Jeremias, parecia ser seguro e vantajoso. Os estranhos que tentavam mandar nele ficavam zangados e tentavam forçá-lo a fazer o que ele não queria, mas sem resultado. Jeremias não mostrava a sua zanga, nem perdia a paciência como faziam os seus primos cavalos, que começavam a mexer-se e se fosse preciso levantavam-se nas patas dianteiras e disparavam desatando a fugir. Jeremias não era dado a fugas, mesmo se viessem animais tentar atacar o rebanho quando ele estava por perto, ele nunca fugia, lutava, enfrentava-os e fazia-os ir embora. Este seu lado corajoso, de enfrentar os perigos e não fugir era pouco conhecido, apenas o seu dono e a família conheciam o seu heroísmo.

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Quando insistiam demasiado com ele, lá levantava e sacudia as patas traseiras em jeito de aviso, naquilo a que habitualmente chamam um coice, isso em geral bastava para deixarem de o incomodar. Quando não bastava, então mostrava a sua enorme dentadura e fazia um arremedo de morder, tal como os seus parentes que viviam em liberdade, longe dos humanos, quando lutavam ou bulhavam uns com os outros. Os burros selvagens que viviam em grupo nunca tinham um chefe entre eles, cada um tinha que tomar as suas decisões e fazer as suas escolhas, não faziam como os cavalos que respeitavam o que eles achavam ser o mais sábio e todos lhe obedeciam.

Como Jeremias era muito paciente muitas pessoas gostavam de vir ter com ele e davam-lhe pancadinhas, ou pequenas palmadas, ou então mexiam-lhe no focinho, parecia que achavam que ele gostava, mas não podiam estar mais enganadas. O que ele gostava era que lhe esfregassem os pelos do pescoço, numa espécie de massagem como faziam os burros selvagens que roçavam os pescoços uns nos outros em sinal de carinho.

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Havia muitas pessoas que pensavam que ele era uma espécie de cavalo pequeno com orelhas enormes, pêlo mais crespo e desgrenhado e claro sem o porte elegante e a altivez do cavalo. Claro que se o achavam uma espécie de cavalo o tratavam como um cavalo, dando ordens e instruções e esperando que ele fizesse o que lhe mandavam… Não resultava, porque Jeremias só fazia o que achava seguro ou que era bom para ele, não se preocupava com a vontade das pessoas, excepto com a vontade do seu dono porque ele sabia pedir com cuidado e não o colocava em situações perigosas. Se o dono estivesse por perto e mostrasse que ele podia confiar num desconhecido, então Jeremias obedecia, mas continuava sempre atento para ver se o que queriam que fizesse era seguro.

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Como Jeremias era descendente de burros selvagens de África, ele contentava-se com pouca comida e pouca água, e a comida podia ser ervas quase secas e pouco apetecíveis para cavalos e outros animais, ele conseguia viver feliz com muito pouco. Não se pense que por ser mais pequeno que o cavalo tinha pouca força, pelo contrário, era muito robusto e musculado, não era dado a corridas, mas conseguia carregar muito, ou puxar carroças e arados. Para descobrir os melhores caminhos e trepar pela montanha não havia outro igual, havia até quem lhe chamasse engenheiro e topógrafo, tal era a sua mestria. Quando o dono fazia viagens muito longas com ele e adormecia no seu dorso no regresso a casa, nunca havia problema porque o Jeremias sabia sempre como voltar, não importava onde tivessem ido.

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Na vila havia um bando de gaiatos que gostava às vezes de o provocar e começavam a dizer-lhe:

- Olha o Jeremias, é burro todos os dias!

Depois riam e lá vinham ter com ele com aquela coisa das festas na cabeça e as pancadinhas que ele detestava. Mesmo assim, arreliado com o tratamento, ficava paciente e sem criar problemas. Se o dono os via e ouvia, lá começava a dizer-lhes com calma que se pensavam que estavam a ofender o burro, se queriam dizer que não conseguia aprender, ou que não sabia escolher o que era melhor para ele estavam enganados. Explicava que os burros são animais capazes de aprender durante toda a vida e que gostam de o fazer. O dono do Jeremias até gostava de perguntar aos miúdos se eles gostavam de aprender, e nem todos diziam que sim?!

Numa dessas vezes o dono do Jeremias convidou os pequenos para irem com ele e com o Jeremias ao moinho levar o trigo ao moleiro que gostava de chamar jerico e jumento ao Jeremias. E lá foram todos divertidos, um de cada vez nas costas do Jeremias. O dono lá foi ensinando como deviam fazer para tudo correr bem. Explicou-lhes como podiam dar “festinhas” ao Jeremias para que ele gostasse e ficasse contente com eles. Os meninos foram perguntando mil coisas, porque é que o Jeremias tinha bigodes, porque é que tinha pestanas tão grandes, porque é que a cauda parecia uma vassoura, porque é que o pêlo dele parecia sempre despenteado, … Ele lá ia explicando que o Jeremias precisava dos bigodes para se orientar como os gatos e os cães, que as pestanas eram para fazer sombra, … A dada altura, já cansado, disse que o pelo desordenado era para ter mais estilo desportivo, sim porque ele era um verdadeiro todo-o-terreno, não era frágil e preocupado com aparências como os cavalos.

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O dono do Jeremias também lhes explicou que mesmo quando estava doente, o Jeremias não se queixava, não gemia, o dono só conseguia perceber porque o Jeremias ficava um pouco menos ativo, menos alerta e interessado no que o rodeava, com menos vontade de investigar e cheirar tudo à sua volta. Os meninos acharam muito estranho que o burro ficasse quieto e inativo quando tinha dores, quando eles tinham dores queixavam-se e pediam ajuda, mas o dono explicou que não era assim que os burros faziam, eles eram estoicos. O que é isso, perguntaram as crianças. O dono do Jeremias disse que é sofrer em silêncio, sem mostrar a ninguém.

Ao fim do dia as crianças estavam encantadas com o Jeremias, tinham aprendido tanto, sentiram a sua paciência, doçura e bonomia. Aprenderam também que quando usavam a palavra burro tinham muitas ideias erradas sobre o animal e o que conseguia fazer. Os meninos passaram a respeitar os burros, em especial o Jeremias, e a admirar as suas capacidades.

O Jeremias por seu lado estava contente, tinha tido as crianças por perto e aprendera como cada um deles conseguia andar consigo e tinha recebido muitas esfregadelas no pescoço como tanto gostava.

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