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Contos por contar

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04
Jun21

A menina descalça

Desafio dos Pássaros 3.0 - Tema 3

Cristina Aveiro

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Foto: Artur Pastor

Andava sempre descalça, como as restantes crianças da aldeia. Os seus pequenos pés estavam habituados à dureza do chão, ao calor e ao frio e pareciam nem sentir as pedras do caminho. Apenas quando ia à cidade reparava que havia pessoas que usavam tamancos ou sapatos e botas nos pés. Havia também a professora e o senhor padre que nunca tinham os pés descalços.

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Foto: Artur Pastor

Um dia a sua madrinha disse-lhe que lhe ia mandar fazer uns tamancos com a pele do porco que iam ter na matança. A pequena ficou contente com a ideia de ter umas tamancas, mas o que mais a entusiasmou foi a festa da matança. Era sempre um dia especial em que havia carne fresca para todos, em que faziam as morcelas e as chouriças. Era uma festa com a família e os vizinhos, até se comprava pão branco em vez da broa que coziam sempre. Quanto às tamancas, talvez fosse bom, afinal via muitas mulheres na cidade a usá-las.

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Foto: Artur Pastor

Veio o dia em que teve de ir ao sapateiro para tirar as medidas para fazerem as ditas tamancas e depois mais tarde a madrinha chamou-a lá a casa para lhe entregar o presente. A menina chegou e ficou encantada com as tamancas novas. Eram de madeira clara com tachas reluzentes e a pele do porco também era clara e limpa. Eram mesmo bonitas! A madrinha disse-lhe para ir lavar os pés à bica da represa junto à casa para não as calçar com os pés sujos. A menina assim fez e depois calçou-as com todo o cuidado. Não sabia o que devia esperar porque nunca tinha calçado nada e sentiu logo os seus pés aprisionados em algo duro, muito duro. A madrinha perguntou-lhe se gostava e se estava contente. A menina disse que sim, que gostava muito. Estava convencida que devia ser por não estar habituada e com o tempo ia ficar melhor com as lindas tamancas.

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Saiu de casa da tia e ao caminhar para casa parecia que o chão do caminho tinha pedras como nunca, sentia todos os altos e baixos e tudo isso lhe magoava os pés por baixo. Na parte de cima a pele grossa do porco roçava-lhe a pele delicada que ia desaparecendo à medida que caminhava. Ainda não tinha chegado à fonte que ficava a meio do caminho e já tinha duas enormes feridas a sangrar no peito de cada pé. Os seus pés parecia que andavam aos soluços de forma desconchavada dentro das tamancas e não havia maneira de andarem em ritmo certo. A dor que sentia na planta e no peito dos pés tornavam o caminhar cada vez mais difícil, mas a menina não se atrevia a descalçar-se como tanto lhe apetecia. O que iriam dizer as gentes da aldeia, pensariam que não tinha gostado do valioso presente da madrinha. Ela não queria dar esse desgosto à madrinha e lá foi caminhando a custo até que chegou a casa.

Assim que entrou descalçou-se e disse para as tamancas:

- Não aguento mais convosco!

Ao mesmo tempo que o dizia atirou com elas para longe. A mãe e o pai que já estavam ao borralho nos bancos corridos da lareira grande ficaram admirados com a atitude da menina que não era dada a explosões. Perguntaram o que se passava, porque tinha mandado as tamancas e porque não aguentava com elas. A menina mostrou os seus pés ensanguentados e feridos e disse o quanto lhe doíam os pés e que nunca mais queria usar tal coisa. Nunca as pedras do chão a tinham magoado tanto, nem mesmo quando dava uma topada nalgum seixo mais levantado que não tivesse visto. Estava dito, não as queria mais.

Os pais tiveram pena da sua menina, ela que estava tão contente por ir ter as tamancas agora não se estava a dar com elas!

Então o pai disse-lhe que a madrinha não lhe tinha dado uns tamancos, deviam ser era umas salgadeiras como as de pôr a carne do porco porque afinal lhe tinham posto a carne à vista… A menina bem sabia que o pai estava a brincar com ela para que não levasse o assunto tão a sério, mas não achou graça nenhuma, continuava zangada com as tamancas. Então o pai voltou à carga e disse-lhe que se os seus sapatos lhe tivessem feito aquele serviço aos pés que os mandava para o lume e nunca mais os queria ver.

Ainda o pai não tinha acabado de dizer já a menina fazia voar as tamancas para o lume. O pai nunca imaginara que a menina fosse passar aos atos e muito menos com aquela rapidez. De um salto pegou na tenaz e salvou as tamancas do lume, afinal eram novas e tinham sido caras.

A menina disse para fazerem o que quisessem com elas, mas que aos seus pés nunca mais voltariam.

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Foto: Artur Pastor

Texto no âmbito do Tema 3 do Desafio dos Pássaros - 3.0 que nos dava como mote "Não aguento mais contigo! - afirmou enquanto o atirava para longe.

Este texto vive no Portugal descalço dos anos 50, onde nalgumas cidades foram criadas multas para os que lá circulassem sem calçado. Como se fosse uma questão de escolha e não de uma pobreza extrema. Queria esconder-se essa pobreza aos olhos de alguns citadinos talvez. 

 

 

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