As meninas e o Tempo
Era uma vez duas meninas pequeninas que adoravam brincar, inventar objetos novos, pintar, desenhar, cantar, correr e saltar e rir sem parar.
Um dia veio o Tempo e com os seus vagares foi fechando as meninas em corpos enormes, obrigou-as a ficarem muito sérias, talvez até importantes, prendeu-as em casas grandes com muitas coisas para fazer.
As meninas já não podiam fazer as coisas que gostavam: brincar, inventar, correr, rir e saltar. As meninas tinham que fazer coisas a que chamavam trabalho e estavam sempre com outras pessoas com corpos enormes, ninguém brincava ou fazia coisas só porque se sentia feliz e queria mostrar isso com todo o seu corpo, correndo, saltando e rindo.
Neste mundo tudo tinha muitas regras, havia momentos para correr, mas sem rir ou fazer “tontices”, momentos para cantar, mas em lugares próprios e da maneira adequada, momentos em que se podia chorar, mas eram muito poucos, momentos para rir, mas devia ser a seguir a dizerem certas coisas, … e por aí fora, sempre com regras e mais regras. Nada do que fosse espontâneo e fora das regras era bem recebido.
Quase parecia um daqueles teatrinhos que as meninas faziam antes, mas com caras vazias, sempre a dizer que estavam cansados, sempre pouco contentes com tudo e com nada.
Não é preciso dizer o quanto as meninas se sentiam presas e sem vontade de representar aquele teatrinho da vida das pessoas com os corpos grandes, mas o Tempo não deixava que fosse de outra maneira.
Os únicos momentos em que as meninas voltavam a ser livres era quando ficavam as duas sozinhas, ou então quando estavam só com meninas e meninos. Nestes momentos tudo voltava a ser mágico! Era como se nunca tivesse vindo o Tempo.
As meninas inventavam as suas coisas, faziam novos objetos, falavam sem parar de ideias tontas que as faziam rir lá do fundo. Subiam para as mesas e faziam discursos inventados sobre o que lhes viesse à cabeça, ora eram fadas, ora bruxas encantadoras ou leoas corajosas.
Nesses momentos mágicos, em que voltavam a ser meninas só havia uma coisa que as preocupava. Receavam sempre que chegasse alguma pessoa dos corpos grandes. Já tinha acontecido e tinha sido perturbador. As pessoas dos corpos grandes ficavam a olhar reprovadoramente e com desdém. Era quase como se achassem que as meninas (que continuavam presas nos seus corpos enormes) estivessem doentes, ou fossem de outro planeta. Faziam perguntas desagradáveis:
- O que estão a fazer?
- Para que serve isso?
- Porque é que estão tão contentes?
- Voltaram a ser criancinhas?
As meninas fechavam o rosto e nem explicavam nada porque sabiam que quem fazia estas perguntas nunca iria compreender as respostas.
As meninas ficavam sempre tristes por perceberem que as pessoas dos corpos grandes dizendo que adoravam as crianças, na verdade, consideravam-nas inferiores a elas, menos importantes, como se não tivessem nada para ensinar só por serem pequenas.
Quando as meninas estavam só com crianças ficavam também livres do Tempo e todos se divertiam juntos. Havia brincadeira, teatrinhos, cantorias, jogos, riscos e rabiscos, abraços verdadeiros e o mundo ficava perfeito por algum tempo.
O Tempo nunca deixou as meninas voltarem a ser livres. Os seus corpos enormes começaram a encolher aos poucos e já funcionavam mal. As caras das meninas eram já muito enrugadas e os cabelos ralos e branquinhos. Apesar de os seus corpos serem já frágeis continuavam, sempre que conseguiam, a ter os seus momentos mágicos, onde eram meninas que brincavam e faziam coisas “tontas”.
Um dia o Tempo, cansado de as prender, devolveu-lhes a liberdade e as meninas voaram. São agora duas estrelas marotas e rabinas que nunca deixaram de ser meninas.