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Contos por contar

Contos por contar

20
Ago21

O filho do moleiro

Cristina Aveiro

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Foto: Diogo Margarido

Era uma vez um menino que quase tinha nascido no moinho de vento que era do seu pai e que antes tinha sido do seu avô. Já o seu bisavô era moleiro, mas tinha apenas um moinho de madeira. A arte dos ventos e das mós, o sentir o grão e a delicadeza da farinha acabada de moer entre os dedos calejados e rudes eram o seu berço e a maior riqueza da família.

O moinho era uma enorme máquina complexa e engenhosa, onde as madeiras preciosas do Brasil e de outros lugares, as pedras enormes e especiais dos casais de mós, as cordas grossas e finas de sisal, o ferro e o pano das velas funcionavam numa harmonia como uma orquestra. O moinho tocava várias músicas, a vários ritmos, nunca havia silêncio no moinho a menos que não houvesse vento.

Domingos Alvão.jpg

Foto: Domingos Alvão

O avô continuava a ajudar o pai no moinho, mas já não conseguia levar as sacas pesadas de grão de trigo para o sobrado onde estava o engenho de cima. Também já não conseguia levantar as mós para serem picadas quando já estavam lisas de tanto moer, nem tão pouco conseguia ter força para rodar o sarilho que fazia mover o “telhado” do moinho com o mastro, velas e tudo para apanhar melhor o vento quando ele mudava de direção. O menino acompanhava o avô nas suas tarefas porque todos tinham de ajudar e havia sempre grão para escolher e farinha caída da mó para espoeirar com o peneiro redondo e tirar o farelo, estar atento ao sino do catavento para avisar se o vento tinha mudado de direção, …

Raquel Roque Gameiro-Dentro do moinho.jpg

Aguarela sobre Papel: Raquel Roque Gameiro

O menino gostava quando o vento estava valente e fazia rodar as mós a toda a velocidade. Ele nem sabia se gostava mais do casal de mós de cima, junto ao “telhado” que moíam o trigo ou do casal de mós que ficavam por baixo, no piso do meio, e que moíam o milho. Lá no topo via as serras em volta, o mastro a rodar movendo a entrosga, uma enorme roda de madeira com uma espécie de dentes, que encaixavam com perfeição no engenho e passavam o movimento ao veio que movia todas as mós.

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No piso do meio não havia tanta maquinaria, era mais calmo, era ali que gostava de dormir sobre as tábuas e era também onde comiam.

Sentia-se feliz por fazer parte de uma família de moleiros, viviam todos ao sabor do vento e tinham brio na sua arte. Na feira de São Pedro juntavam-se os moleiros todos daquelas serras, iam bem arranjados nos melhores trajes com os seus longos barretes pretos de borla na ponta. Aproveitavam para comprar os búzios de barro em forma de cabaça, que colocavam nas cordas para “cantarem” consoante o vento que fazia. Era também o lugar para comprar cordas, plainas, puas, serras e serrotes e demais apetrechos que eram precisos para manter aquele navio à vela que nunca saia do lugar. Que fique claro que ninguém chamava navio à vela aos moinhos, mas era assim que o menino os imaginava desde que na escola lhe tinham falado dos navegadores e das velas latinas. Talvez fosse por isso que gostava quando havia pouco vento e os moleiros tinham que usar “a roupa toda”, ou seja tinham que desenrolar todo o pano das velas, aqueles enormes triângulos brancos bem enfunados a rodar faziam os moinhos ainda mais majestosos e belos.

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Foto: Artur Pastor

No moinho havia sempre gatos para afugentar os ratos, havia o Faísca que dava sinal assim que algum burro ou carroça se aproximavam e, claro, havia o preto e a ruça, os burros do moleiro que nunca se cansavam de carregar o grão ou a farinha por aqueles montes fora.

O avô nunca se cansava de contar ao menino como tinha sido difícil construir aquele moinho de pedra, como o seu bisavô se preocupara por o filho erguer uma obra tão custosa. Falava-lhe de como tinha sido difícil trazer as setenta carradas de pedra para construir a torre, as mós, todas as madeiras para o enorme mastro, para a entrosga, para as varas, … O menino escutava sempre e não se cansava, havia sempre algo que ainda não tinha escutado antes e ele adorava entender como tudo aquilo fora feito e funcionava.

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O pai do menino esperava que o filho lhe seguisse a arte do vento mas o menino tinha outros sonhos, queria navegar pelo mundo, andar com as velas e a força do vento pelo mar fora e ver o que nunca tinha visto. O pai ficou sem palavras, ele nunca tinha saído da sua terra, nem nunca tinha pensado ser outra coisa que não moleiro, afinal tinha nascido e crescido ligado ao moinho, nem sabia se conseguiria viver longe dele. O menino insistiu e não desistiu do seu sonho, partiu e tornou-se marinheiro.

A vida no mar encantava-o, conhecer outras paragens, outras gentes, outros cheiros, outros modos de viver. Nas terras onde ia prestava sempre atenção aos moinhos. Nunca tinha imaginado que houvesse tantos e tão diferentes. Nunca imaginara tão pouco que houvesse moinhos de vento que serviam para tirar água dos canais, para serrar madeiras, … Havia moinhos quase de todas as formas e cores, continuavam a fasciná-lo.

Gostava dos sons do navio, da madeira, das cordas, das velas e dos ventos. Ficou com a pele curtida do sol e do mar e as suas mãos agora já eram calejadas e grossas como as do seu pai. Passados muitos anos no mar voltou à sua terra natal, ao seu moinho. Nunca poderia ter imaginado como tudo estava diferente. Imaginava que tudo estaria como quando tinha partido. Esquecera-se que todos, tal como ele tinham envelhecido e que muitos já tinham partido para sempre. A maior parte dos moinhos estava ao abandono. Muitas pessoas tinham partido para as cidades e havia máquinas que moíam o trigo e o milho sem usar o vento. Aos poucos os moleiros envelhecidos tinham deixado a sua arte e muitos dos seus filhos tinham procurado outros trabalhos para poderem viver.

O filho do moleiro sentiu uma enorme dor no coração por ver aquelas máquinas fascinantes paradas e ao abandono. Viu moinhos que já tinham morrido pela força da chuva e do vento e por não terem quem cuidasse deles. Nunca tinha imaginado sentir este amor aos gigantes de braços erguidos ao céu. Tinha amor aos navios, às velas e à vida errante pelo mundo, mas não podia saber que o seu amor aos moinhos tinha o mesmo tamanho.

Estava numa encruzilhada da vida. Queria voltar ao mar e às velas errantes, mas também queria ficar e cuidar das velas ancoradas na serra. Enquanto pensava e repensava na vida deixava-se embalar pelos sons do moinho.

 

Para aprender mais sobre moinhos de vento:

Grupo Moinhos de Portugal

 

3 comentários

  • Imagem de perfil

    Cristina Aveiro 07.09.2021

    Querido Anónimo, é tão bom saber que me lê! E que consegue eleger os contos que mais gosta, sinto-me muito honrada e grata! Os moinhos de vento sempre me fascinaram e adorei escrever este conto porque aprendi muito sobre a técnica que usam e a maravilhosa arte dos moleiros. Ao ir aprendendo vi que há enormes semelhanças com os veleiros porque afinal ambos vivem do vento... Obriaga
  • Imagem de perfil

    Cristina Aveiro 07.09.2021

    Pensei que a resposta anterior tinha desaparecido e ... repeti-me
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