A Dona Ilda e o Senhor Silva
Amizades do coração
Estavam sempre ali, na casa ao lado, a minha era alta e a deles mais baixa. Da janela do quarto dos meus pais via a D. Ilda atarefada na sua amada cozinha e falava com ela, ou ia apenas ver se ela lá estava e se podia ir até à sua casa.
Não podiam ser mais diferentes e ao mesmo tempo mais semelhantes. Ele era um leitor ávido, ancorando o seu saber em livros, e entendidos nas matérias. As bibliotecas públicas e as pessoas com recurso a livros e saberes eram sempre fontes de conhecimento onde satisfazia a sua sede de saber. Ela nunca tinha aprendido a ler, nem a fazer as contas como nós fazíamos, mas a sua capacidade de fazer e aplicar os seus saberes era tão grande que nunca sentiu interesse em gastar o seu tempo a aprender a ler ou fazer as contas e gerir como faziam outros.
Ela foi a primeira chef gourmet que conheci. A ida à praça (o mercado da cidade) era um ritual cheio de exigência, a escolha dos legumes e frutas, a exigência na escolha do peixe fresco... Ah como a pescada graúda era inspecionada, desde a consistência, à cor da guelra, ao cheiro, ao estado da escama! A D. Ilda foi a primeira pessoa que vi ir devolver uma enorme pescada à peixeira porque não estava em condições e para isso teve de regressar no autocarro, demorar bastante tempo, e acima de tudo desestabilizar o seu ritmo de rituais cuidadosamente repetidos para que à hora do almoço tudo estivesse no ponto, nem antes, nem depois. Fiquei espantada quando ela explicou que descompôs a peixeira e que ela teve de lhe devolver o dinheiro.
Quando ela fazia os seus lendários rissóis da dita pescada fresca, da que dá boas lascas eu adorava ver, ler-lhe algum pormenor da receita que ela apesar de saber de cor, por vezes queria ouvir, ou então talvez gostasse apenas de me dar o prazer de lhe ler. Deixava-me sempre ajudar nas tarefas, do estender da massa, colocar a bolinha de recheio com uma colher, panar antes da fritura... Eu adorava estar envolvida em todo aquele processo de rigor profissional. Depois era ir para o anexo encostado à cozinha onde estava o fogareiro a petróleo para fritar os rissóis. O mais curioso de tudo era que por muito que eu tentasse e provasse, não conseguia gostar dos ditos, mas adorava estar ali.
Do outro lado do anexo, na zona mais aberta à luz havia outra zona onde a magia acontecia, a mesa de marceneiro do Senhor Silva. Ali era um não acabar de ferramentas, plainas (a plaina corre ligeira, afaga a madeira...), as serras, os serrotes, o formão a grosa, as limas, a pua, os produtos desconhecidos, o verniz, o diluente, o viochene, ... Também ali eu nunca me cansava de escutar, perguntar e aprender e a paciência e vontade de explicar e ensinar do Senhor Silva nunca se esgotava.
Quando me ofereceu o livro "Adeus quinze anos" nos meus quinze anos, ou quando me apresentou os livros de Lobsang Rampa sobre a sua vida no Tibete, abriu-me portas de mundos que eu desconhecia e fez-me sentir especial. O que aprendi com ele sobre cinema fascinou-me, ele tinha acumulado durante muitos anos a tarefa de arrumador de sala no cinema para além do emprego como escriturário (Oh como era veloz a escrever à máquina, aquele som nunca se esquece) e dos trabalhos como marceneiro e restaurador de móveis. Foi naquele trabalho que ganhou o hábito de ver cinema, muitos anos depois, continuava a ir semanalmente assistir a filmes. Era a única pessoa que conhecia que o fazia.
A D. Ilda e o Senhor Silva foram enormes amigos do coração, a diferença de idades não foi nunca um obstáculo ao desenvolvimento desta profunda amizade. Hoje que nos observam lá do alto, estou certa que estão contentes por partilhar convosco este meu sentir.
Texto escrito no âmbito do desafio 52 semanas de 2022 da Ana de Deus em que também participam:
A Ana de Deus
A Introvertida
Ana do Green Ideas
Anita Não se Cansa disto
Bruno no Fumo do seu Cigarro
Carlos Palmito
Di a Mulher
Fátima Bento
Isabel M Silva
João-Afonso Machado
José da Xã
Maria Araújo
Maria do Abrigo das Letras
Purpurina
Sam ao Luar