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Contos por contar

Contos por contar

21
Ago21

A Vida

Cristina Aveiro

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A Vida irrompe nos lugares mais improváveis e não há nada que o possa impedir. Das profundezas escaldantes do oceano junto a nascentes termais submarinas aos desertos áridos onde a Vida parece impossível aos gelos eternos das calotes polares nada detém a Vida e ela impõe-se em todos os lugares desta nossa Terra Azul.

Entre duas pedrinhas da calçada, entre blocos de pedras de um monumento secular a Vida irrompe como se tivesse encontrado as condições ideais para que acontecesse. Chega com garra, lutando pelo seu espaço, por pouco que seja, com excesso ou falta de água, com calor ou frio extremo a Vida encontra os seus caminhos e persiste resiliente com o seu único objetivo de perpetuar-se, vingar, povoar a nossa Terra Azul.

A Vida da gente é diferente da Vida em geral porque somos o ser mais estranho da Terra. Dependemos da Vida de todos os outros seres vivos, mas vemo-nos como os mais importantes de todos, os únicos que importam. Acreditamos que as nossas capacidades singulares nos conferem direitos sobre tudo o que demais existe e acreditamos de uma forma tonta e infantil que somos os que melhor podem escolher o destino para todos os demais. A Terra Azul está a mostrar-nos que não temos escolhido bem e que não temos estimado e protegido a nossa casa. Há mais gente a perceber que não estamos a respeitar a Vida, a nossa e a dos demais que compartilham a Terra Azul connosco! A Vida encontra sempre os seus caminhos, tenho Fé que se encarregará de ir ensinando ao Homem a sua pequenez e insignificância e que haverá que mudar de Vida para a Vida continuar aqui na casa que nos foi dada e que todos temos de respeitar e proteger.

 

 

 

Este texto foi escrito para celebrar o aniversário do blog Raios de Sol e a publicação do livro "Terra Azul" da nossa Célia!

20
Ago21

O filho do moleiro

Cristina Aveiro

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Foto: Diogo Margarido

Era uma vez um menino que quase tinha nascido no moinho de vento que era do seu pai e que antes tinha sido do seu avô. Já o seu bisavô era moleiro, mas tinha apenas um moinho de madeira. A arte dos ventos e das mós, o sentir o grão e a delicadeza da farinha acabada de moer entre os dedos calejados e rudes eram o seu berço e a maior riqueza da família.

O moinho era uma enorme máquina complexa e engenhosa, onde as madeiras preciosas do Brasil e de outros lugares, as pedras enormes e especiais dos casais de mós, as cordas grossas e finas de sisal, o ferro e o pano das velas funcionavam numa harmonia como uma orquestra. O moinho tocava várias músicas, a vários ritmos, nunca havia silêncio no moinho a menos que não houvesse vento.

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Foto: Domingos Alvão

O avô continuava a ajudar o pai no moinho, mas já não conseguia levar as sacas pesadas de grão de trigo para o sobrado onde estava o engenho de cima. Também já não conseguia levantar as mós para serem picadas quando já estavam lisas de tanto moer, nem tão pouco conseguia ter força para rodar o sarilho que fazia mover o “telhado” do moinho com o mastro, velas e tudo para apanhar melhor o vento quando ele mudava de direção. O menino acompanhava o avô nas suas tarefas porque todos tinham de ajudar e havia sempre grão para escolher e farinha caída da mó para espoeirar com o peneiro redondo e tirar o farelo, estar atento ao sino do catavento para avisar se o vento tinha mudado de direção, …

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Aguarela sobre Papel: Raquel Roque Gameiro

O menino gostava quando o vento estava valente e fazia rodar as mós a toda a velocidade. Ele nem sabia se gostava mais do casal de mós de cima, junto ao “telhado” que moíam o trigo ou do casal de mós que ficavam por baixo, no piso do meio, e que moíam o milho. Lá no topo via as serras em volta, o mastro a rodar movendo a entrosga, uma enorme roda de madeira com uma espécie de dentes, que encaixavam com perfeição no engenho e passavam o movimento ao veio que movia todas as mós.

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No piso do meio não havia tanta maquinaria, era mais calmo, era ali que gostava de dormir sobre as tábuas e era também onde comiam.

Sentia-se feliz por fazer parte de uma família de moleiros, viviam todos ao sabor do vento e tinham brio na sua arte. Na feira de São Pedro juntavam-se os moleiros todos daquelas serras, iam bem arranjados nos melhores trajes com os seus longos barretes pretos de borla na ponta. Aproveitavam para comprar os búzios de barro em forma de cabaça, que colocavam nas cordas para “cantarem” consoante o vento que fazia. Era também o lugar para comprar cordas, plainas, puas, serras e serrotes e demais apetrechos que eram precisos para manter aquele navio à vela que nunca saia do lugar. Que fique claro que ninguém chamava navio à vela aos moinhos, mas era assim que o menino os imaginava desde que na escola lhe tinham falado dos navegadores e das velas latinas. Talvez fosse por isso que gostava quando havia pouco vento e os moleiros tinham que usar “a roupa toda”, ou seja tinham que desenrolar todo o pano das velas, aqueles enormes triângulos brancos bem enfunados a rodar faziam os moinhos ainda mais majestosos e belos.

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Foto: Artur Pastor

No moinho havia sempre gatos para afugentar os ratos, havia o Faísca que dava sinal assim que algum burro ou carroça se aproximavam e, claro, havia o preto e a ruça, os burros do moleiro que nunca se cansavam de carregar o grão ou a farinha por aqueles montes fora.

O avô nunca se cansava de contar ao menino como tinha sido difícil construir aquele moinho de pedra, como o seu bisavô se preocupara por o filho erguer uma obra tão custosa. Falava-lhe de como tinha sido difícil trazer as setenta carradas de pedra para construir a torre, as mós, todas as madeiras para o enorme mastro, para a entrosga, para as varas, … O menino escutava sempre e não se cansava, havia sempre algo que ainda não tinha escutado antes e ele adorava entender como tudo aquilo fora feito e funcionava.

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O pai do menino esperava que o filho lhe seguisse a arte do vento mas o menino tinha outros sonhos, queria navegar pelo mundo, andar com as velas e a força do vento pelo mar fora e ver o que nunca tinha visto. O pai ficou sem palavras, ele nunca tinha saído da sua terra, nem nunca tinha pensado ser outra coisa que não moleiro, afinal tinha nascido e crescido ligado ao moinho, nem sabia se conseguiria viver longe dele. O menino insistiu e não desistiu do seu sonho, partiu e tornou-se marinheiro.

A vida no mar encantava-o, conhecer outras paragens, outras gentes, outros cheiros, outros modos de viver. Nas terras onde ia prestava sempre atenção aos moinhos. Nunca tinha imaginado que houvesse tantos e tão diferentes. Nunca imaginara tão pouco que houvesse moinhos de vento que serviam para tirar água dos canais, para serrar madeiras, … Havia moinhos quase de todas as formas e cores, continuavam a fasciná-lo.

Gostava dos sons do navio, da madeira, das cordas, das velas e dos ventos. Ficou com a pele curtida do sol e do mar e as suas mãos agora já eram calejadas e grossas como as do seu pai. Passados muitos anos no mar voltou à sua terra natal, ao seu moinho. Nunca poderia ter imaginado como tudo estava diferente. Imaginava que tudo estaria como quando tinha partido. Esquecera-se que todos, tal como ele tinham envelhecido e que muitos já tinham partido para sempre. A maior parte dos moinhos estava ao abandono. Muitas pessoas tinham partido para as cidades e havia máquinas que moíam o trigo e o milho sem usar o vento. Aos poucos os moleiros envelhecidos tinham deixado a sua arte e muitos dos seus filhos tinham procurado outros trabalhos para poderem viver.

O filho do moleiro sentiu uma enorme dor no coração por ver aquelas máquinas fascinantes paradas e ao abandono. Viu moinhos que já tinham morrido pela força da chuva e do vento e por não terem quem cuidasse deles. Nunca tinha imaginado sentir este amor aos gigantes de braços erguidos ao céu. Tinha amor aos navios, às velas e à vida errante pelo mundo, mas não podia saber que o seu amor aos moinhos tinha o mesmo tamanho.

Estava numa encruzilhada da vida. Queria voltar ao mar e às velas errantes, mas também queria ficar e cuidar das velas ancoradas na serra. Enquanto pensava e repensava na vida deixava-se embalar pelos sons do moinho.

 

Para aprender mais sobre moinhos de vento:

Grupo Moinhos de Portugal

 

17
Ago21

O Ladrão de Sombras

Ainda o desafio da Fátima Bento - "Porque eu Posso!"

Cristina Aveiro

Desafio porque eu posso-O Ladrao de Sombras.jpg

Costumava ter receio de desafios e neste Sapal passei a apreciá-los e a ser grata por existirem. Em Março recebi o livro da foto, enviado pela Fátima Bento como comemoração dos 7 anos do Porque eu Posso. Adorei o desafio de refletir sobre o que posso fazer exatamente porque posso e ajudou-me a encontrar trilhos para desbravar e desafiar-me.

O livro que recebi mostra bem a delicadeza da Fátima na escolha que fez. Só na pausa de Verão pude ler "O Ladrão de Sombras". Tocou-me muito, recordou-me o que tantas vezes repetimos, que os filhos não são nossos, apenas nos são emprestados, mas encontrei uma forma de exprimir o que sinto sobre esta aventura suprema de ser mãe: os filhos não são nossos, mas nós somos dos filhos, para sempre e constantemente! 

É um livro muito abrangente no que diz respeito aos desafios que a Vida nos pode trazer. Gostei muito e estou grata à Fátima.

 

 

 

 

 

 

 

 

05
Ago21

O Camaleão da Praia

Cristina Aveiro

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Foto: Carla Eira

Era uma vez um jovem camaleão que tinha nascido há um ano nas dunas duma pequena ilha de areia entre o mar e a Ria Formosa. Estava feliz por finalmente ser adulto e poder exibir uma belíssima cor verde luminosa com um padrão de manchas e listas pretas que eram o seu orgulho, sentia-se confiante na sua beleza porque ainda há poucos dias se encontrara com um camaleão mais velho que ficara imediatamente amarelo, mostrando que não admitia outro macho adulto naquela zona. Tinha agora a certeza que ia encontrar uma linda “camaleõa” bem verdinha que iria querer começar uma nova família com ele. As “camaleõas” não tinham listas ou manchas pretas, tinham a pele de um verde muito luminoso, com algumas zonas um pouco mais claras e eram muito graciosas no seu andar vagaroso, elegante e tranquilo.

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Foto: Benny Trap

O camaleão enquanto crescera tivera de mudar de pele várias vezes porque a sua pele não esticava e à medida que crescia ia deixando a pele pequena e criando uma nova cada vez mais bonita.

Um dia estava ele bem agarrado a uma dittrichia viscosa, que é uma planta das dunas com florinhas amarelas pequeninas e que tem um cheiro forte, quando a avistou. Oh como ela era linda! Primeiro vira-a com um olho, depois virou-se e ficou a vê-la com os dois olhos. Que porte, que beleza, como desfilava sobre o muro caiado! Tudo nela era perfeito, os seus pezinhos com os três dedinhos para fora e os dois para dentro, as suas lindas mãozinhas com os dois dedos para fora e os três para dentro, as suas unhas jovens e delicadas… A forma elegante com elevava a cauda ao caminhar! Até a sua boca era perfeita, parecia estar a sorrir, mesmo estando fechada.

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Foto: Teresa Dias

Tratou de começar o longo caminho até ao muro caiado para que ela o visse, lutava contra o seu corpo vagaroso, como queria correr para chegar logo ao pé dela, mas ele não era uma lagartixa, nem um caranguejo para poder correr sempre que tivesse vontade. Diligentemente lá foi indo com o seu andar cadenciado em câmara lenta, foi avançando aos poucos até que ficou num pedaço de areia sem vegetação e ficou totalmente à vista, embora ainda estivesse muito afastado do muro. Ele tinha quase a certeza de que ela já apontara um olho na sua direção. Fica ainda com mais vontade de chegar depressa junto da bela “camaleõa”. Olhou à sua volta e ao olhar para o lado do mar, viu o caminho de tábuas onde as pessoas andam na praia junto às dunas. Decidiu arriscar e ir por ali até ao muro caiado. Era um caminho mais curto mas mais perigoso, ia estar mais exposto e tinha medo que as pessoas o pisassem, mas por ela tudo valia a pena, queria conhecê-la rapidamente.

Ia a meio do caminho de tábuas quando tudo aconteceu muito depressa. Um rapaz, cheio de sacos com mil coisas coloridas para brincar na praia, viu-o lá bem ao longe e desatou a correr. O rapaz tropeçou e espalhou as suas bugigangas pelo estrado e pela areia, mas levantou-se e continuou de novo a correr. O camaleão percebeu o que ia acontecer e bem tentou apressar-se mais e voltar às ervas da duna para se proteger, mas a lentidão dele e a rapidez do rapaz levaram ao inevitável encontro. Primeiro o rapaz observou-o com curiosidade e medo (ufa, ainda bem pensou o camaleão!). O rapaz começou a pensar que era um animal pré-histórico que ali aparecera como por magia! Aos poucos o rapaz começou a esticar a mão e tocou-lhe. O camaleão tentou mostrar-se mais assustador, mas o rapaz parecia ter perdido o medo e … agarrou-o e levou-o para mostrar aos pais e à irmã.

O camaleão estava aterrorizado, olhava para todos os lados, tentava não perder de vista a bela “camaleõa” do muro caiado, mas nem consegui focar os olhos em nada de tão depressa que iam. Estava cheio de medo, nunca andara não mão de ninguém, nunca andara àquela velocidade alucinante, ia cair, ia ser esmagado por aquela mão enorme!

Assim que o rapaz parou para o mostrar à família a irmã do rapaz desatou a gritar e a fugir sem parar. Parecia-lhe que um dos dinossauros de brincar do irmão tinha ganho vida, era pequeno, mas ainda assim muito assustador. Os pais do rapaz explicaram-lhe que era um camaleão jovem e que ele não o devia ter trazido. Disseram também que este animal e os restantes devem ser deixados a viver a sua vida, podemos ficar a vê-los, mas não os devemos perturbar. Disseram que só devemos ajudá-los quando eles correm perigo, como era na passadeira da praia, mas não devemos tocar-lhes, devemos usar um ramo de uma planta ou outro objeto e depois devemos devolvê-los à duna, sobre uma planta, de preferência em plantas com flores para terem muito alimento.

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Foto: Markus Luske

O rapaz ficou triste, ele não tinha querido fazer mal ao camaleão, estava apenas contente e fascinado! Foi então até ao local onde o apanhara e pousou-o delicadamente num pequeno arbusto da duna com flores amarelas, tal como lhe tinham dito, ali o camaleão iria poder comer os muitos insetos que pousavam nas flores e iria recuperar do susto rapidamente.

O pequeno camaleão agarrou-se firmemente com as patitas a um ramo, enrolou a sua cauda bem enroladinha à volta do ramo para não cair e ficar bem camuflado. Ia ter de descansar por umas horas. Ali sentia-se seguro como quando estava dentro do ovo na toca que a sua mãe escavara antes de ele nascer.

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Foto: Benny Trap

Precisava de retemperar as forças, não podia ainda dar-se ao luxo de ir continuar a tentar ser visto pela sua bela “camaleõa”. O camaleão só esperava que ela não se afastasse muito do muro caiado.

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