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Era uma vez um caranguejo eremita que estava radiante porque finalmente tinha conseguido encontrar a sua primeira casa, finalmente passara a ter a parte mole do seu corpo protegida. Que feliz estava, como se sentia seguro!
Que aventura tinha sido encontrar todos aqueles outros caranguejos que tal como ele precisavam de uma “casa”. Como tinha sido incrível aprender a fazer a fila perfeita para que ordenados por tamanhos, pudessem ocupar a casa do seguinte e deixar a sua para o anterior, ele claro, era o último da fila porque ainda não tinha casa alguma. Tudo começava no maior e na bela concha de búzio ou caracol que tinha o tamanho certo para o seu corpo crescido. Sendo o primeiro da fila, logo se colocava atrás o que precisava da sua bela concha que tinha vestido no último ano, e a seguir o de tamanho um pouco mais pequeno e por aí fora. Uma vez preparados a mudança tinha que fazer-se rapidamente para que não viesse ninguém se aproveitar do momento em que estavam despidos e fáceis de apanhar. Era uma dança rápida e certeira e depois da mudança feita lá iam todos contentes viver a sua vida na casa nova.
O nosso caranguejo ficava muitas vezes parado ao sol, perdido em pensamentos e a ver os outros caranguejos que ele tanto admirava. Admirava as suas cores, as suas carapaças fortes que cresciam com eles, a sua agilidade porque não tinham de carregar conchas pesadas às costas, enfim, tudo neles parecia melhor e mais belo do que aquele seu corpo frágil e incompleto.
Um dia, ganhou coragem e perguntou a um caranguejo fantasma:
- Como é que fazes para ser tão invisível? Como consegues parecer igual à areia? Quem me dera ser como tu, não ter de me encolher todo na concha para não me atacarem.
O caranguejo fantasma olhou para ele surpreendido e respondeu:
- A sério? Gostavas de ser invisível? Eu não gosto nada! Quem me dera puder mudar de concha todos os anos como tu e estar sempre diferente dentro de uma casa forte e segura.
Afastaram-se sem saber o que dizer um ao outro. Cada um pensava que o outro adorava a sua vida e afinal não era como tinham imaginado.
Mais à frente o caranguejo vampiro, do alto da sua bela cor lilás disse:
- Eu adoro o vosso aspeto, tu caranguejo fantasma consegues ir onde quiseres e ninguém sabe, pois és quase invisível, tu caranguejo eremita tens todos aqueles amigos que se juntam e ajudam quando precisam de mudar as vossas casas. Eu, nesta minha horrível cor e com o nome de vampiro assusto todos e ninguém se aproxima de mim. Não sabem como é difícil a minha vida solitária.
Com tanta conversa, em menos de nada juntou-se um grupo enorme de caranguejos de todas as cores e feitios.
O pequeno caranguejo eremita não podia imaginar que houvesse tantos caranguejos e tão diferentes, no tamanho, na cor, nos olhos e nas pinças que nalguns casos eram mesmo assustadoras.
Na enorme roda que se formou, havia alguns caranguejos eremita que tinham casas estranhas, não pareciam conchas e eles não pareciam nada confortáveis nelas. Havia mesmo um que apesar de ter uma casa que parecia um búzio continuava a parecer despido.
Os caranguejos ficaram ali a olhar uns para os outros e sem o dizerem todos estavam admirados porque afinal, uma coisa era certa, todos eram caranguejos…
Photo by Rompalli Harish from Pexels
A maré começava a subir quando um pequeno caranguejo vermelho com olhos azuis muito estreitos e levantados começou a falar baixinho, um pouco envergonhado, mas muito determinado:
- Nós somos todos diferentes. Todos pensamos que tudo seria mais fácil se a nossa vida fosse como a do outro que estamos a admirar. Só cada um sabe como é a sua vida. Todos somos importantes, cada um é único e tem o seu caminho para seguir.
E continuou:
- O mar tem espaço e precisa de todos nós com as nossas cores, tamanhos e feitios, forças e fraquezas e nunca se esqueçam, todos somos caranguejos.
Saber mais sobre este pequeno heroi...
Razões para não ter um caranguejo eremita no aquário
O lixo marinho e o caranguejo eremita
PS- Há muito tempo que não vinha a estas paragens do Sapal Encantado, mas hoje vim dar um mergulho. Foram inspiração os companheiros de escritas Jose da Xã, busy as a bee on a rainy day, Pessoas e Coisas da Vida, Olga Pinto, Um pássaro sem poiso, Generalidades, green ideas, Aquém-Tejo, e muitos mais a quem sou grata.
Há mais de um ano que tenho estado ausente do Sapal, por isto, por aquilo, sem porquê... Já quase sentia que não pertencia a este lugar (por falta de comparência), e eis que na caixa do correio recebo este presente fantástico!
Comovi-me ao ver a quem o José da Xã dedicou o livro e adorei reler alguns textos e conhecer as novidades. Caro José continua a escrever, a partilhar, a espalhar o teu entusiasmo e a inspirar quem te encontra no caminho!
Muito grata!!
Há muito muito tempo, ou talvez agora mesmo, aqui mesmo ao lado, no mar desta praia, ou talvez num mar distante nunca visitado pelas pessoas, havia um mundo cheio de vida com muitos, muitos habitantes.
Tinham os corpos longos em formato de pena, com rabos e barbatanas e dois pequenos olhos, um de cada lado da cara. Quando nasciam eram todos iguais, de um cinzento azulado, cobertos de escamas prateadas que lançavam a luz em sua volta em mil cores brilhantes. Nas manhãs refletiam os tons de azul e cinzento do oceano. Por vezes ao pôr do sol, nos dias límpidos de sol intenso brilhavam com tons de laranja e rosa.
À medida que iam crescendo as escamas iam mudando e surgiam formas e padrões diferentes nas escamas e cada peixe passava a refletir apenas algumas cores, ora vermelhos, ora verdes e azuis e tantas outras cores sem regra nem norma comum. A única regra era que o corpo se mantinha longo e em formato de pena, com os rabos e barbatanas e os olhos no mesmo lugar.
Havia peixes que todos reconheciam como os mais belos, ora pelos seus belos padrões regulares e majestosos das escamas, ora por terem cores diferentes do que alguma vez se tinha visto, ou simplesmente porque emanavam beleza por onde passavam.
Havia também peixes que pareciam ter cores ao acaso, que tinham poucos padrões nas suas escamas e os que tinham pareciam ter sido feitos à pressa e ao acaso, nalguns casos eram mesmo feios.
Podia pensar-se que os peixes mais belos seriam mais importantes, mais respeitados admirados e estimados pelo cardume. Podia imaginar-se que os peixes menos belos e até algo feios eram desprezados, desconsiderados e desrespeitados pelos outros peixes do cardume, mas... naquele mar e naquele cardume tudo se passava de modo muito diferente. Todos sabiam que todos os peixes eram igualmente importantes e que na verdade a essência da beleza do cardume era o conjunto de todos, com a diversidade de cores, padrões e tipos de beleza. Todos eram fundamentais para que o conjunto fosse mais rico, mais belo e surpreendente.
A identidade do cardume era a sua diversidade e harmonia.
Todos juntos conseguiam iludir e defender-se dos peixes maiores que andavam sempre a rondar o cardume procurando alimento para sobreviver no enorme reino do oceano.
Este texto foi inspirado nas sardinhas decoradas pelas crianças que frequentam a Biblioteca da minha escola. Quando vi o seu trabalho senti esta história.
Sou apaixonada pelo tema das sardinhas, quase levei a mãe do meu marido ao desespero quando lhe propus que bordasse um quadro com sardinhas para uma das minhas filhas...
Era uma vez um enorme jardim onde havia lagos, estufas, bosque, floresta, … e uma enorme zona quadrada, cercada por altas sebes de cameleiras centenárias, onde as únicas plantas com flor eram roseiras.
No jardim das rosas, assim lhe chamavam, não havia duas roseiras iguais e eram muitas, quase mil. Em cada roseira, as rosas que nasciam também eram sempre diferentes, embora tendo a mesma cor, a mesma forma, cada uma era diferente e especial. Havia rosas de todas as cores, tamanhos e feitios. Havia rosas enormes, pequenas, muito pequeninas, cheias de pétalas, outras singelas com poucas pétalas, quase pareciam malmequeres.
No meio de tantas rosas havia uma rosa pequenina, que tinha nascido como um botão perfeito, bem cheio de pétalas brancas que à medida que abria deixava todos os visitantes do jardim encantados com a beleza das suas pétalas brancas, com o doce aroma suave que deixava no ar. A sua beleza singela, mas imponente ao mesmo tempo era a sua essência.
O jardineiro chamava à pequena rosa branca, Rosinha, tal era o carinho que tinha pela pequena flor.
Três canteiros mais à frente, numa enorme roseira, havia uma rosa onde os visitantes do jardim também paravam sempre para a contemplar. Era uma rosa grande, volumosa, muito elegante, com pétalas aveludadas de uma cor irresistível, alguns diziam que era carmim escuro, outros diziam que era vermelho alaranjado ou laranja avermelhado. Na verdade, não havia uma cor que a definisse.
Tinha um perfume intenso e agradável que inundava o ar em volta do canteiro.
Com tanta beleza e encanto podia imaginar-se que fosse bela por fora e feiosa por dentro, mas era uma rosa bondosa e feliz no seu jardim.
O jardineiro chamava-lhe Senhora Rosa e tinha enorme prazer em cuidar dela.
A pequena rosa branca admirava imenso a Senhora Rosa, gostaria de ter a sua cor única, admirava a sua elegância e gostaria de ter o seu aroma.
Na verdade, a Rosinha sentia-se feia, pequena, sem beleza ou elegância. Não conseguia perceber que os visitantes a admiravam tanto quanto à Senhora Rosa. Quando as outras rosas do jardim lhe diziam o quanto a admiravam, a Rosinha dizia sempre que era insignificante e quase feia.
Um dia a Senhora Rosa em conversa com a Rosinha explicou-lhe o quanto a admirava, o quanto gostava da luz que as suas pequenas e delicadas pétalas brancas enviavam para todo o jardim. Disse ainda que adorava o seu tamanho pequeno que lhe recordava a sua infância em que sentia muito menos a força do vento quando soprava.
A Rosinha abriu as pétalas de espanto! Nunca pudera imaginar que a Senhora Rosa a admirasse!
As centenas de rosas do jardim assistiam admiradas a esta conversa e, sentindo enorme gratidão por viverem naquele jardim mágico, começaram a cantar uma canção sobre a Rosinha e a Senhora Rosa, as únicas rosas com nome daquele jardim!
Este texto foi inspirado no Jardim Botânico do Porto - Casa dos Avós de Sophia de Mello Breyner Andresen e em duas Rosas de quem gosto muito.
Naquele Pinhal encostado ao mar bravo de grandes ondas e vendavais havia seres que não se viam em mais lugar nenhum, na verdade nem mesmo naquele Pinhal.
Quando se passeava nos longos caminhos retos e ortogonais daquela floresta imensa, se se escutasse com atenção, ouvia-se o sussurro dos ramos dos pinheiros altos que se misturava com o rugir do mar lá ao longe, com a voz do vento que os movia e com o canto dos pássaros. Era aquela a voz da Catedral Verde, assim lhe chamara um dos seus amantes, era única e viciante. Quem conseguisse escutar a voz e sentir no coração a sua vibração ficava para sempre apaixonado por aquele lugar, nunca mais conseguia viver muito longe dele e tinha de voltar uma e outra vez bem amiúde.
As criaturas do Pinhal passeavam no manto emaranhado de fetos altos e verdes na Primavera, nas copas dos pinheiros altos no Verão, pelo meio dos mantos de cogumelos no Outono e nas charcas que se formavam nas chuvas do Inverno.
Divertiam-se a abanar os ramos dos pinheiros fazendo cair as pinhas e as carumas, mesmo sem haver vento, espalhando o penisco. Sim o penisco, as pequenas sementes de pinheiro com a sua bela asa voadora que as levava longe antes de pousarem na caruma entrelaçada.
Os pequenos seres mágicos adoravam atrapalhar o caminho das borboletas nos seus voos à volta das pequenas flores rasteiras que enfeitavam o chão arenoso do Pinhal durante todo o ano.
No Outono as criaturas mágicas espalhavam os esporos dos míscaros amarelos, dos cantarelos, e de tantos outros cogumelos que deixavam no ar um aroma especial a bosque e a molhado.
Na Primavera as criaturas pintavam de amarelo as flores dos tojos e nascia um verdadeiro oceano amarelo debaixo do teto verde das copas dos pinheiros.
Não se sabia como eram as criaturas mágicas, mas todos tinham a certeza que cheiravam a resina, a pinhão e a maresia. Embora não as conseguissem ver todos acreditavam que eram uma espécie de nevoeiro de mil tons de verde luminoso e brilhante como a cauda de um cometa. Nas noites de nevoeiro e lua cheia havia quem dissesse que se podiam ver os rastos que deixavam no nevoeiro prateado.
Todos os habitantes das redondezas amavam o Pinhal gigante e mágico que era uma verdadeira muralha protetora da fúria do mar, dos vendavais e das areias voadoras. Gostavam de passear pelos caminhos geométricos do Pinhal, os aceiros e arrifes, pelos trilhos sinuosos como o do comboio de lata.
No Pinhal podiam beber água em tantas fontes… a da Água Formosa, a Férrea, a das Canas, a do Sardão, a da Garcia, a Nova, a de São Pedro, a do Tremelgo, a da Felícia, a dos Franceses… Todas as fontes eram lugares muito especiais, onde havia plantas e animais diferentes, típicos dos lugares encharcados. E os poços do Pinhal?! Eram muitos, mas os mais importantes eram o poço dos ingleses, o do fogo velho e o do nove.
No Pinhal os pinheiros mais altos e perfeitamente retilíneos eram chamados Pau Real, ou Sementões e tinham nomes e números tal era a sua importância.
Já as ribeiras eram lugares misteriosos, onde a luz do sol era coada pela vegetação densa e onde havia árvores gigantes, eucaliptos seculares, carvalhos alvarinhos enormes. Os habitantes não conseguiam saber se a Ribeira mais mágica era a de Moel, a do Tremelgo a do Rio Tinto ou a da Guarda Nova, mas de todas a de Moel era a mais concorrida.
Junto à ribeira de Moel havia um lugar a que chamavam Vale dos Pirilampos que fascinava todos quando as pequenas luzes pintavam o ar com os seus bailados. Acreditava-se que as criaturas mágicas se abrigavam nestas zonas densas quando dormiam embaladas pelo canto dos pássaros.
Os habitantes amavam tanto o seu Pinhal encantado que tinham construído torres altíssimas com escadas em caracol até ao topo em lugares elevados, a torre do Facho, a da Crastinha, a da Boavista e a do Ponto Novo. No topo das torres havia uma pequena sala envidraçada onde dois habitantes faziam continuamente a vigilância do Pinhal e enviavam mensagens para as aldeias com pombos de correio sempre que avistavam ameaças para a floresta.
A meio do Pinhal, junto ao mar, havia um farol que para além de guiar os navios também fazia a vigilância do tão precioso Pinhal.
O Pinhal estendia-se até às dunas da praia que contornavam todo o Pinhal a poente, e mesmo aí cresciam pinheiros. Eram moldados pelo vento, fazendo um enorme esforço para crescer apesar dos fortes ventos vindos do mar. Estes pinheiros não conseguiam crescer rumo ao céu. Cresciam deitados sobre as dunas, rastejando, erguendo-se um pouco de onde em onde, para depois voltar ao chão. Eram torcidos e retorcidos, sempre mais baixos do lado do mar e um pouco mais altos do lado do Pinhal.
Nas dunas havia outros companheiros na luta pela sobrevivência, os samoucos, as camarinheiras, os cardos lilases, os lírios das areias, … eram uma verdadeira barreira de proteção para as árvores e plantas do interior do Pinhal.
Num dia trágico, o que ninguém podia imaginar aconteceu. Um incêndio gigante, furioso, incontrolável devorou quase todo o Pinhal. Queimou mesmo as dunas só parando na areia da praia.
Foto: Hélio Madeira
Os habitantes ficaram desolados, sem saber como sobreviver àquele inferno de fogo que depois se tornou num deserto de cinza e negro. Acreditavam que as criaturas tinham sido destruídas pelo poder das chamas do terrível fogo apocalíptico. Imaginavam que tinham perdido para sempre o Pinhal secular que era parte da sua identidade.
A Natureza, rapidamente, na sua imensa força de vida, fez nascer pequenas plantas, começando a pintar de verde o imenso deserto cinza.
Ano após ano, vieram os pequenos arbustos, lá no meio, pequeninos pinheiros aninhados na vegetação rasteira foram aparecendo, frágeis, mas cheios de vida. As gentes plantaram pinheiros e outras árvores, mas eram incapazes de tratar de todo o imenso espaço nu e vazio.
Todos começaram a acreditar que as criaturas mágicas afinal deviam ter fugido do fogo, deviam ter resistido, que talvez tivessem ficado a pairar sobre a Lagoa da Saibreira durante o fogo. Sabiam que as Criaturas tinham voltado a fazer nascer os pinheiros por todo o Pinhal.
Agora todos sentiam que tinham ainda mais de se empenhar a cuidar e a fazer renascer a sua amada Catedral Verde porque assim tinha de ser.
Para saber mais sobre o Pinhal, a sua história, imagens do passado, lugares a descobrir, deixo-vos estes dois fantásticos blogues onde recolhi informação preciosa e aprendi sobre este lugar que amo.
https://pinhaldorei.net/lugares-recantos/
http://opinhaldorei.blogspot.com/
Era uma vez duas meninas pequeninas que adoravam brincar, inventar objetos novos, pintar, desenhar, cantar, correr e saltar e rir sem parar.
Um dia veio o Tempo e com os seus vagares foi fechando as meninas em corpos enormes, obrigou-as a ficarem muito sérias, talvez até importantes, prendeu-as em casas grandes com muitas coisas para fazer.
As meninas já não podiam fazer as coisas que gostavam: brincar, inventar, correr, rir e saltar. As meninas tinham que fazer coisas a que chamavam trabalho e estavam sempre com outras pessoas com corpos enormes, ninguém brincava ou fazia coisas só porque se sentia feliz e queria mostrar isso com todo o seu corpo, correndo, saltando e rindo.
Neste mundo tudo tinha muitas regras, havia momentos para correr, mas sem rir ou fazer “tontices”, momentos para cantar, mas em lugares próprios e da maneira adequada, momentos em que se podia chorar, mas eram muito poucos, momentos para rir, mas devia ser a seguir a dizerem certas coisas, … e por aí fora, sempre com regras e mais regras. Nada do que fosse espontâneo e fora das regras era bem recebido.
Quase parecia um daqueles teatrinhos que as meninas faziam antes, mas com caras vazias, sempre a dizer que estavam cansados, sempre pouco contentes com tudo e com nada.
Não é preciso dizer o quanto as meninas se sentiam presas e sem vontade de representar aquele teatrinho da vida das pessoas com os corpos grandes, mas o Tempo não deixava que fosse de outra maneira.
Os únicos momentos em que as meninas voltavam a ser livres era quando ficavam as duas sozinhas, ou então quando estavam só com meninas e meninos. Nestes momentos tudo voltava a ser mágico! Era como se nunca tivesse vindo o Tempo.
As meninas inventavam as suas coisas, faziam novos objetos, falavam sem parar de ideias tontas que as faziam rir lá do fundo. Subiam para as mesas e faziam discursos inventados sobre o que lhes viesse à cabeça, ora eram fadas, ora bruxas encantadoras ou leoas corajosas.
Nesses momentos mágicos, em que voltavam a ser meninas só havia uma coisa que as preocupava. Receavam sempre que chegasse alguma pessoa dos corpos grandes. Já tinha acontecido e tinha sido perturbador. As pessoas dos corpos grandes ficavam a olhar reprovadoramente e com desdém. Era quase como se achassem que as meninas (que continuavam presas nos seus corpos enormes) estivessem doentes, ou fossem de outro planeta. Faziam perguntas desagradáveis:
- O que estão a fazer?
- Para que serve isso?
- Porque é que estão tão contentes?
- Voltaram a ser criancinhas?
As meninas fechavam o rosto e nem explicavam nada porque sabiam que quem fazia estas perguntas nunca iria compreender as respostas.
As meninas ficavam sempre tristes por perceberem que as pessoas dos corpos grandes dizendo que adoravam as crianças, na verdade, consideravam-nas inferiores a elas, menos importantes, como se não tivessem nada para ensinar só por serem pequenas.
Quando as meninas estavam só com crianças ficavam também livres do Tempo e todos se divertiam juntos. Havia brincadeira, teatrinhos, cantorias, jogos, riscos e rabiscos, abraços verdadeiros e o mundo ficava perfeito por algum tempo.
O Tempo nunca deixou as meninas voltarem a ser livres. Os seus corpos enormes começaram a encolher aos poucos e já funcionavam mal. As caras das meninas eram já muito enrugadas e os cabelos ralos e branquinhos. Apesar de os seus corpos serem já frágeis continuavam, sempre que conseguiam, a ter os seus momentos mágicos, onde eram meninas que brincavam e faziam coisas “tontas”.
Um dia o Tempo, cansado de as prender, devolveu-lhes a liberdade e as meninas voaram. São agora duas estrelas marotas e rabinas que nunca deixaram de ser meninas.
Este ano o meu trabalho, por razões de saúde, é na Biblioteca da escola. Estou a aprender muito sobre o que as crianças afinal gostam de escutar nos contos.
Como o que as crianças mais pequenas mais procuravam era fazer desenhos de forma livre, partimos daí e começamos a pedir-lhes para introduzir palavras, depois, como apareceram ideias fantásticas começamos a recolher, moldar e dar forma ao que as crianças iam inventando.
Afortunadamente tenho comigo a Celina Santiago que domina as técnicas de criação e execução na expressão visual e que tem vindo a descobrir que "levar os meninos" a criar contos é uma experiência fantástica.
Como muito já se fez e está a fazer-se, houve necessidade de partilhar o que vai surgindo nesta aventura e assim nasceu um blog dedicado ao projeto.
Venho partilhar convosco porque isso me faz feliz!
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